terça-feira, 8 de abril de 2014


 
   Falava como alguém que sente algo. Eu não estava habituada a esse tom de voz em Lajos. Observava-o em silêncio.
- Que simples - disse. - Depressa compreendes. Tu foste, tu poderias ter sido, para mim, o que me faltava: o carácter. São coisas que se sentem. Uma pessoa que não tem carácter, ou não tem um carácter perfeito, tem o seu quê de inválido, no sentido moral. Há muitas pessoas assim. Como se fossem criaturas perfeitas, a quem falta uma mão, ou uma perna. Aplica-se-lhes uma prótese e tornam-se logo capazes de trabalhar, de ser úteis à sociedade. Não te ofendas com a analogia, pois tu poderias ter sido uma prótese para mim... Uma prótese moral. Espero não magoar-te - acrescentou, docemente, e inclinou-se para mim.
- Não - disse-, só não acredito nisso, Lajos. Um carácter não se pode substituir. O sentido moral não se pode transmitir de uma pessoa para outra como um transplante artificial. São teorias. Não te ofendas.
- Não são só teorias. O sentido moral, vês, não é algo de hereditário, mas uma característica adquirida. Os homens nascem sem moral. O sentido moral dos selvagens ou das crianças é diferente da moral de um juiz de sessenta anos do Supremo Tribunal de Viena ou de Amesterdão. Adquire-se o sentido moral durante a vida, tal como se adquirem maneiras e cultura. - Falava em tom de padre, como um especialista. (...) Tu és assim Eszter, um génio de carácter; não, não protestes! Foi o que senti em ti. Eu, em questões de moral, sou um surdo, quase analfabeto. Por isso, refugiei-me em ti; creio que foi, sobretudo, por essa razão.
(...)
- Agora já não faz sentido dizer-te estas coisas... mas talvez tenhas razão, não se pode estar calado uma vida inteira. Não acredito nas tuas teorias, mas acredito na realidade, Lajos. A realidade é que me enganaste; como se diria antigamente, em linguagem de romance: "brincaste comigo". Tu és um jogador tão estranho... alguém que, em vez de jogar com as cartas, joga com as paixões e com os seres humanos. Eu era uma das damas do teu jogo. A seguir, levantaste-te da mesa e foste embora... Porquê? Porque te aborreceste. Só foste embora porque te aborreceste. Esta é a verdade. Esta é a pavorosa, a imoral verdade. Pode-se deitar fora uma mulher, como um caixa de fósforos, por paixão, por se ter um carácter assim, por não conseguir ligar-se a uma mulher, ou porque olha para mais alto, porque tudo e todos lhe servem de instrumento. Ainda posso compreender... É infame, mas tem algo de humano. Mas deitar fora alguém por distracção... isso é mais do que infâmia. Isso não tem desculpa, porque é desumano. Já percebes, agora?
 
 
   Márai, Sándor. A herança de Eszter. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2006, pp 121 - 123.
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