domingo, 20 de abril de 2014

 
Nota - Há umas semanas ( ou terão sido meses?), a Profª Dra. Teresa Martins Marques da Univ. Clássica de Lisboa publicou um extenso poste no Face salientando a qualidade da escrita de Rosa Lobato de Faria. Os argumentos aduzidos  correspondiam,em grande parte, àquilo que eu tinha pensado quando convidei a escritora em questão - e ela aceitou - para integrar a Antologia "Um Rio de Contos", ou seja, Rosa Lobato de Faria é uma autora de primeiríssima água. No romance que agora publicito através de três postes, a romancista articula de forma exemplar aspectos mais tradicionais da narratividade ( a sequência da intriga, por exemplo!) com características assumidamente modernas (como o modo de trabalhar o espaço e o tempo narrativos...). Outro elemento de grande peso, neste "A Alma Trocada", é a forte poeticidade do discurso, que, juntamente com a rigorosa e delicada caracterização das personagens, anula por completo a carga, que poderia ser grosseira, dos vocábulos geralmente tidos por palavrões. Finalmente, a argúcia do olhar da romancista, por vezes eivado de uma ironia ácida, faz dela uma exímia leitora de "mundos interiores" que depois dispõe ante os nossos olhos... para que as nossas almas, apesar dos dilemas do seu sentir, jamais se troquem umas pelas outras. V.O.M.
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   O menino só sabe brincar brincadeiras idiotas de mariquinhas? O seu pai compra-lhe carrinhos, soldados, comboios e você anda aí feito parvo a brincar com uma peninha que ainda por cima arrancou do meu sofá novo? Ora esteja quieto que me está a enervar. (...) Outro dia na praia, em vez de ir jogar à bola com os outros miúdos que se fartaram de puxar por ele, preferiu ficar a desenhar as nuvens e a rir-se sozinho como os maluquinhos quando mudavam de feitio, vai-me de bloco de desenho para a praia, não acho normal, não me diga que nos saiu um artista, mas donde é que isto vem? Há artistas na sua família? Olhe, na minha não. A minha mãe é muito boa senhora mas, Deus me perdoe, uma labrega. O meu querido pai era aquele homem ligado à terra. Eu, não sei fazer um risco, você é o que se sabe. E os seus pais? Ninguém era dado às artes? Já me ocorreu mais de uma vez se não me terão trocado o filho na maternidade. (...) O meu pai reduz-se ao silêncio. Nem responde a estes desabafos da minha mãe. Já me deve ter arrumado no arquivo morto. Quando contribuiu para a compra do apartamento, das duas, uma: ou teve esperança que essa minha decisão de comprar casa fosse um sintoma das atitudes viris que se seguiriam ou viu nela uma forma de me afastar da família. Vá lá ser paneleiro para o raio que o parta, deve ter pensado. E artista e escritor e a puta que o pariu, desculpa Generosa, mas já que dizes que ele não é teu filho.(...) Apetecia-me pensar um bocadinho no Hugo, mas não me dão tréguas.
(...) A Raquel tem olhos de rato. Não só por serem pequenos e escuros, mas porque são astutos. Espreitam-me para tentar descobrir a razão daquele convite. Eu deixo-a sofrer.(...) A minha avó Jacinta costuma dizer que as más notícias se dão à sobremesa. É isso que vou fazer. Ela pediu trouxas-de-ovos e eu deixo-a lambuzar-se até à última gota de calda e de repente, sem aviso, digo, sabes que sou gay , não sabes? Estás farta de saber mas tens andado a disfarçar, a seguir o exemplo dos meus pais. Vocês acham que, se me casarem, fica tudo resolvido. Mas acontece que agora apaixonei-me, por isso o casamento foi definitivamente à viola (...)
- Tens prazer em ser cruel.
   Não é crueldade nenhuma porque tu estás fartíssima de saber. (...) Queres café?
   Quero, disse ela, ainda atordoada.
   Pedi os cafés e a conta. Porque tenho pressa de ir ter com o Hugo, contar-lhe que já não tenho noiva, que o meu rasgão no peito já dói menos, que estou mais preparado para me receber. Estou ansioso por empandeirar a Raquel.
(...) O Hugo não perguntou nada mas li-lhe nos olhos alguma curiosidade. Contei-lhe tudo. Ele abraçou-me e disse, deixa lá, pá. Se sentires falta de uma família, aposto que a minha vai adorar adoptar-te.
   Mas era muito cedo para isso. O Hugo é demasiado generoso.
(...) Nas férias sinto necessidade de ir visitar a minha avó Jacinta porque ela tem de ouvir da minha boca as tenebrosas novidades que a Generosa já deve ter tido a generosidade de lhe passar. (...) A avó levantou-se, veio a mim (...) e abraçou-me com tanta força, com tanto coração, sem uma palavra, sem uma pergunta, que me deu a certeza de que sabia de tudo e fiquei-lhe ainda mais grato por não o ter dado a entender (...)
- Foi a mãe, claro, perguntei.
- Pois, quem havia de ser. Ligou-me para aí num pranto(...). Pedi-lhe que te deixasse em paz, que és maior e vacinado e que antes isso que uma pedra no rim. Explicar não lhe expliquei nada porque ela não percebe. Há coisas que não entram em certas cabeças (...).Cada um é como cada qual (...) e não fizeste nada que atente contra os dez mandamentos.
   Esta argumento fez-me sorrir (...). Só mesmo a minha avó Jacinta para fazer este raciocínio tão simples e pragmático. Com efeito o Hugo até é solteiro, nem o oitavo nem o nono mandamentos estão em causa (...) ele é advogado, chega tarde do escritório, vamos jantar fora ou cozinhamos, na maior concordância.
 
 
   Faria, Rosa Lobato de. A Alma Trocada. Porto: Asa Editores, 2007, pp 28 - 41.
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