Anfiteatro da "Casa das Artes" de Vila Nova de Famalicão
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“O real
poético e o real da poesia: algumas considerações”
Victor Oliveira Mateus
Parece pacífico, em alguns filósofos contemporâneos, a
distinção conceptual – fortemente alicerçada em Lacan - entre Real e Realidade,
surgindo-nos esta última como o conjunto de elementos vividos e observáveis,
enquanto o primeiro nos aparece antes como o território estruturante e
condicionador das situações concretas e vivenciadas (Cf. Slavoj Zizek, Violência, 2009, pp. 20-21). Seguindo
esta linha de raciocínio conseguir-se-á inferir: primeiro, que o Real a
analisar poderá apresentar aspectos contraditórios com a Realidade que lhe é
inerente; segundo, não existe, por conseguinte, um Real único e homogéneo
passível de ser abordado do mesmo modo pelas várias áreas do saber, mas antes
distintas conceções dele consentâneas com os distintos olhares disciplinares
que sobre elas se debruçam – exemplo: o Real investigado pelas matemáticas
acabou desembocando numa linguagem artificial intraduzível pela linguagem natural,
dando azo a uma Realidade de onde a segunda, e seu respectivo código, foram
banidos, aliás, tal procedimento tem vindo a ser tentado nas Ciências Sociais e
Humanas, embora com êxitos muito mais duvidosos, vejam-se os casos da Economia,
da História e da Ciência Política (Cf. George Steiner, Linguagem e Silêncio – Ensaios sobre a Literatura, a Linguagem e o
Inumano, 2014, pp. 36-44).
No caso da poesia, o Real de que ela
tem falado predominantemente ao longo dos séculos não tem escapado à veemência
do olhar analítico-descritivo, nem à necessidade de adequação da linguagem ao Real
por ela tido como concreto, e é na implementação deste mesmo paradigma que
Platão se apresenta como um marco fundamental e fundante. Aliás, não deixa de
ser curioso que tendo este filósofo atribuído aos poetas uma nova conceção do
Real (o da Imitação), divergente da
que eles haviam possuído aquando dos pensadores originários, seja ele também –
no Livro X da República – que os
expulsa da cidade em nome de toda uma arquitectónica que até então tinha sido
alheia à poesia. O trabalho do poeta é, para Platão, “uma espécie de jogo
infantil” (Cf. Platão, República, 1975,
p. 333) e, não tendo ele por fito a criação de objectos reais, nem tão-pouco um
saber baseado na fabricação ou no uso dos referidos objectos, apenas lhe resta
a mais baixa menoridade ontológica (Idem, 331 – 334). Com Platão a Metafísica
adquire foros de cidadania e é com ela que se implementa o Sujeito e um Real
assumidamente dicotómico como traves mestras do Saber e do Ser, passando o real
da Poesia e ser essa zona de sombras onde as aparências se entrecruzam
afastando os seres humanos da verdadeira
realidade – o Inteligível. Com
Platão inicia-se o velamento do Real
poético, metamorfoseado agora num mero Real da Poesia onde “o imitador não tem,
portanto, nem ciência nem opinião recta no que respeita à beleza e aos defeitos
das coisas que imita.” (Idem, ibidem p 333). O Real da poesia é agora o reino
do ludíbrio, da gratuitidade, do lúdico persistente jogando-se algures entre o
erro deliberado e o esquecimento do Ser.
Inicia-se aqui – não sem algumas contradições – um longo caminho que
Aristóteles, na Poética, virá
cimentar.
A poesia, em Platão, encontra-se
intimamente ligada ao fazer, à acção. Diógenes Laércio, quanto a este assunto,
é bastante claro: existem, para este filósofo, três tipos de saber: o prático,
o poético e o teórico, “assim a arquitectura ou a construção de barcos são
ciências poéticas, já que delas resulta uma obra criada “ (Cf. Diogéne Laerce, Vie, doctrines et sentences des philosophes
ilustres. 1 , 1965, p. 189). E é exactamente aqui que surge a inversão no
pensamento ocidental com o consequente velamento
do Real Poético tal como o diziam os pensadores originários: o Sujeito, a
Metafísica e a Subjectividade são agora os pólos instigadores da acção e a
poesia não é mais do que um artefacto produzido pela referida tríade.
Mas a hostilidade de Platão para com o
Real, segundo ele, vislumbrado pelos poetas, bem como para com a Realidade por
eles cantada, está longe da coerência que a Metafísica recém-instalada para si
advoga: os poetas visados por Platão são os que vinham a ser veiculados pela
tradição, sobretudo Homero e Hesíodo, até porque nem tudo o que é escrito em
verso pode ser entendido como poesia. Aristóteles, na Poética (1447 b 16 – 23), viria a reiterar esta última asserção:
“(…) na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, a não ser a
metrificação: aquele merece o nome de poeta, e este, o de fisiólogo, mais do
que o de poeta.”, convém acrescentar que Aristóteles, ao longo desta obra, deixa
escapar por várias vezes o seu enleio por Homero ( Cf. 1448 b 33, 17 e 1459 a
29, 149) e pelos trágicos ( Cf. 1462 b 12, 184), o mesmo acontece com Platão,
que, no Livro II da República, não
consegue esconder a sua admiração por Ésquilo, aliás, Platão defende mesmo que
o ensino dos poetas deve ser ministrado aos guardiães da pólis. Como entender, então, depois de tudo isto, a aversão dos
instauradores da metafísica ocidental aos poetas e à Realidade por estes
cantada? Maria da Penha Villela-Petit (Cf. Kriterion:
Revista de Filosofia, nº 107, vol. 44) segue de perto a tese de Julia Annar
( Cf. Introduction à la République de Platon,
PUF, 1994) que defende que o Livro X da República,
com a consequente defesa da expulsão dos poetas da cidade, teria sido escrito
antes de todos os outros livros da mesma obra, daí alguma falta de concordância
entre esse Livro X e todos os outros relativa a tema em questão, por outro
lado, esse estudo afirma o que pode ser confirmado nos dois filósofos gregos,
ou seja, para eles os poetas, como a sua arte da imitação, dariam uma visão incorreta dos deuses, facto que viria a ter
consequências graves na educação dos jovens e, sobretudo, na governação da
cidade, no entanto, os danos da poesia poderiam ser praticamente diminutos caso
aqueles que a escutassem estivessem imunizados com o respectivo antídoto (Cf. República, 1975, pp 324 e 334; Poética 1460
b 8, 161 – 1461 a 3,168 – 15, 170). Dito de outra maneira – e enfatizando o
título deste texto – os danos causados pelos poetas na concepção do Real que
acabava sendo instalada pela Metafísica, poderiam ser torneados com alguma
eficácia caso o Sujeito, dotado de Razão, usasse essas obras apenas para
exercitar o conhecimento discursivo (dianoia),
visto desses imitadores jamais se poder esperar o acesso à Verdade e à Justiça,
pelo que se concluiria a sua vincada perigosidade no interior da pólis.
Assim emerge um Real da poesia, fundamentado
na Metafísica, na Subjectividade e num Sujeito produtor de artefactos
imitativos e de uma Realidade confinada às aparências. Assim emerge, por
conseguinte, um Real à disposição da Razão e dos Sentidos e uma Realidade tida
por concreta porque objectivável, analisável e oferecendo-se passivamente a
todas as modalidades de um nomear que
passará a ter o ente como ponto de
partida. Estava consolidado, então, o corte com o olhar dos pensadores
originários que haviam precedido Platão e Aristóteles: a Palavra passaria agora
a ser uma das várias capacidades do sujeito e passaria também a ser usada
segundo critérios de eficácia. A própria produção do poema terá então como
finalidade uma mescla de respeito pelo rigor metrificável com o deleite que
pode vir a proporcionar. Tem sido este o Real da poesia a predominar no
ocidente, tem sido este o território onde se tem movido grande parte da
produção poética. Contudo, nesse continuum poético-epistemológico, muitos têm
sido os poetas que perfilharam orientações ontologicamente distintas e cuja escuta se tem centrado nessa clareira onde o ser-sendo se vai desvelando em
seu criptográfico modo, já que, nesta
outra visão, aquilo que se mostra fá-lo de modo velado; esses poetas intuem que a Palavra não é coisa de sua posse,
mas que lhes é concedida por algo que os precede e que ante eles se desvela em sua forma de velar-se – esta era a trave mestra do
Real poético que marcou os pensadores originários e que a Metafísica viria
alterar, mas que, apesar de tudo, continuou irrompendo – episodicamente - em
poetas como Rilke, Holderlin, Novalis, Celan, etc., e, entre os que têm vindo a
escrever em português, em Ricardo Reis, Teixeira de Pascoaes, Dora Ferreira da
Silva e Natália Correia (Cf. Miguel Real, O
pensamento português contemporâneo 1890 – 2010, 2011, pp 806 – 822).
Nestes dois caminhos, discordantes mas
apesar de tudo paralelos, se tem inscrito a poesia do ocidente: o paradigma
platónico-aristotélico com os seus excessos e as suas limitações e o paradigma
originário-heideggeriano com a sua minuciosa perscrutação e as suas
insuficiências; um mais preocupado com o Real da poesia, o outro tentado pela autenticidade no seu modo de acesso ao
Real poético, e é em torno deste último que concluiremos citando as palavras de
Manuel Antônio de Castro (Cf. Poiesis,
Sujeito e Metafísica in “A
construção poética do real”, 2004, pp 64 – 68) quando relaciona acção-que-produz, desvelamento e verdade:
“ A poiesis
enquanto pro-dução com-duz do velamento para o desvelamento. A este
processo (agir da poiesis), os gregos chamaram Aletheia. E nisso
consiste a verdade. Portanto, a verdade como verdade, como aletheia, é poética.
Algo verdadeiro consiste no ser vigente enquanto poiesis. (…) A poiesis,
por isso mesmo, é o vigor da ambiguidade/ polemos da physis,
da clareira, da verdade (aletheia), da abertura do livre
aberto, do iluminar da clareira e do próprio on-sendo. A poiesis
é ambígua, é polemos, agir e não-agir. (…) A poiesis
é, pois, como aletheia, a verdade enquanto
não-verdade de toda verdade.”
Mateus, Victor Oliveira. Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciência, nova série/ número 49/ dezembro 2014 - janeiro 2015.
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