domingo, 12 de outubro de 2014





     Os comunistas liberais são pragmáticos. Odeiam as abordagens doutrinárias. Para eles, hoje não há classe trabalhadora una e explorada. Há simplesmente problemas concretos que é necessário resolver: a fome em África, a sujeição das mulheres muçulmanas, a violência do fundamentalismo religioso. Quando há uma crise humanitária em África - e os comunistas liberais adoram realmente as crises humanitárias que trazem à tona o melhor de si mesmos! -. é despropositado recorrer à retórica imperialista à maneira antiga. Em vez disso, todos nos devemos concentrar naquilo que de facto funciona em vista da solução do problema: empenhar as pessoas, os governos e o mundo dos negócios numa iniciativa comum; começar a fazer com que as coisas avancem, em vez de confiar no auxílio de um Estado centralizador; abordar a crise em termos criativos e não-convencionais, sem dar importância aos rótulos.
     Os comunistas liberais gostam de exemplos como o da luta contra o apartheid na África do Sul (...).
     Os comunistas liberais também gostam dos protestos estudantis que abalaram a França em Maio de 1968. Que explosão de criatividade, e de energia juvenis! A intensidade do abalo que provocaram nos limites de uma ordem burocrática rígida! E o novo impulso que deram à vida económica e social, depois de as ilusões políticas terem sido postas de parte!(...).
     Acima de tudo, os comunistas liberais são verdadeiros cidadãos do mundo. São boas pessoas que se preocupam. Preocupam-se com os fundamentalistas populistas e com as grandes companhias capitalistas irresponsáveis e gananciosas. Vêem as "causas mais profundas" dos problemas de hoje: são a pobreza de massa e a impotência que alimenta o terrorismo fundamentalista. Por isso, o seu objectivo não é ganhar dinheiro, mas mudar o mundo, embora se isso produzir mais dinheiro por acréscimo, não vejam razões para se queixar! Bill Gates é já o maior benfeitor individual da história da humanidade (...). A justificação dos comunistas liberais é que a fim de ajudarmos realmente as pessoas, temos de ter os meios necessários, e, como ensina a experiência do desolador fracasso de todos os métodos estalinistas e colectivistas, a via mais eficaz é a iniciativa privada.
     (...) Consideremos a figura do financeiro e filantropo George Soros, por exemplo. Soros representa a mais implacável forma de exploração financeira especulativa combinada com a preocupação contrária e humanitária frente às consequências sociais catastróficas de uma economia de mercado desenfreada. Até mesmo a sua rotina quotidiana aparece marcada por um contraponto auto-eliminador: metade do seu tempo de trabalho é dedicada à especulação financeira, e metade a tarefas humanitárias - como o financiamento de actividades culturais e democráticas nos países pós-comunistas, ou a escrita de ensaios e livros - que, em última análise, combatem os efeitos das suas próprias actividades de especulação financeira. (...) Segundo a ética comunista liberal a busca implacável do lucro é contrabalançada pela beneficência. A beneficência é a máscara humanitária que dissimula o rosto da exploração económica. (...) o filósofo pós-humanista Peter Sloterdijk traça os contornos da cisão do capitalismo consigo próprio, da sua auto-superação imanente: o capitalismo atinge o seu ponto culminante quando "cria fora de si próprio o seu oposto mais radical  - e o único fecundo -, totalmente diferente de tudo aquilo que a esquerda clássica, prisioneira do seu miserabilismo, era capaz de criar.
(...) Este paradoxo assinala a triste situação em que nos achamos: o capitalismo actual não pode reproduzir-se só pelos seus próprios meios. A beneficência extra-económica é-lhe necessária a fim de manter a seu ciclo de reprodução social.
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 Žižek, Slavoj. Violência. Lisboa: Relógio D'Água editores, 2009, pp 25 - 29.
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