quarta-feira, 29 de outubro de 2014
" O que já nos pertence "
Tirem-nos tudo/ mas deixem-nos a música
Noémia de Sousa
povoa-me habita-me invade-me
não me deixes tomar este veneno sozinha
estremeço de dor
como pode ser tão estranho sentir-me assim
tão alheio de dar ou pedir o que já nos pertence
enquanto sobre imaginados antúrios continua o voo
deslumbrante desses pássaros cegos para um norte infindo
convoca-me um leito sem pátria
onde a sombra reside na asa enorme
de pássaro que enche o quarto
invento novas canções por sobre o trapézio do mundo
e solto à cabeceira a paixão em ganchos cintilantes
flores arrancadas de longo pé
para que a minha loucura abrande
o fervor enfeite meu cabelo
solto em outro trópico
que dança
um candeeiro de luz se acende no mapa ao ver-te
sem saber que não me é necessário pois seus raios não
chegam para iluminar esta pomba mansa que se instala na
minha íris e voa em longas índicas asas e se expande
longe no horizonte
sem saber que a arte é não haver noite suficiente
para tanta demora em chegar a terra
por que não me desvias o olhar e me levas para um escuro
cintilante em que a lua não mente
por que me cega este sol em que me desejas agora?
Leite, Ana Mafalda. Livro das encantações. Lisboa: Editorial Caminho, 2005, pp 25 - 26.
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