domingo, 19 de outubro de 2014




   Será Eichmann um caso paradigmático de má fé, uma mistura de auto-ilusão e estupidez extrema? Ou será, simplesmente, o caso típico do criminoso que nunca se arrepende, que não pode dar-se ao luxo de enfrentar a realidade porque o seu crime se tornou parte integrante dela? (Dostoievki refere nos seus Diários que, na Sibéria, entre dezenas de assassinos, de violadores e de ladrões, nunca conheceu um único homem que admitisse a sua culpa.) E, no entanto, o acaso de Eichmann em nada se assemelha ao do criminoso comum, pois este, face à realidade de um mundo não-criminoso, apenas se pode refugiar dentro dos limites estreitos do seu bando. Eichmann, porém, só precisava de evocar o passado para se convencer de que não estava  a mentir aos outros nem a enganar-se a si mesmo: nessa altura, tinha estado em perfeita harmonia com o mundo em que vivia. E a sociedade alemã, com os seus oitenta milhões de pessoas, tinha-se defendido da realidade dos factos exactamente da mesma maneira, com a mesma auto-ilusão, as mesmas mentiras e a mesma estupidez que eram agora parte integrante da mentalidade de Eichmann. Estas mentiras mudavam de ano para ano. Muitas vezes, contradiziam-se. Pior ainda, não eram necessariamente as mesmas consoante se destinassem aos diferentes sectores da hierarquia do Partido ou ao povo em geral. Mas a auto-ilusão tornara-se prática corrente, quase um requisito moral de sobrevivência; de tal modo que hoje, dezoito anos volvidos sobre o colapso do regime nazi, quando o conteúdo exacto dessas mentiras se encontra quase totalmente esquecido, ainda é por vezes difícil acreditar que a mentira não se haja tornado parte integrante do carácter alemão. Durante a guerra, a mentira mais eficaz com o povo em geral era o slogan da "batalha predestinada do povo alemão" ( der Schicksalskampf des deutschen Volkes). Lançado por Hitler ou por Goebbels, este "slogan" facilitava o processo de auto-ilusão em três aspectos: em primeiro lugar, sugeria que aquela guerra não era uma guerra; em segundo, que tinha sido desencadeada pelo destino e não pela Alemanha; e, em terceiro, que era uma questão de vida ou de morte para os alemães , que se viam obrigados a escolher, entre aniquilar os seus inimigos ou serem eles próprios aniquilados.
    A espantosa prontidão com que Eichmann reconheceu, tanto na Argentina como em Jerusalém, os seus crimes, não foi mera consequência desta sua capacidade para se auto-iludir (característica de qualquer criminoso). Resultou, sobretudo, dessa atmosfera generalizada da mentira sistemática que então reinava no Terceiro Reich. Era "evidente" que havia desempenhado um papel no extermínio dos judeus; era evidente que, se "ele não os tivesse transportado, os judeus não teriam sido conduzidos ao matadouro". " O que há para 'confessar' ?", perguntava ele. E agora, prosseguia, "gostaria de fazer as pazes com os (seus) antigos inimigos" - desejo que Eichmann partilhava (...) mas também, por incrível que pareça, com muitos alemães comuns a quem, no final da guerra, se ouviam propósitos de teor idêntico. Este cliché revoltante já não lhes chegava de cima; tinha-se tornado uma frase feita, fabricada pelos próprios, tão desprovida de realismo como os clichés a que o povo alemão se habituara ao longo de doze anos; e era quase palpável a "extraordinária sensação de euforia" que estas palavras proporcionavam a quem as pronunciava.


  Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém, uma reportagem sobre a banalidade do mal. Coimbra: Edições Tenacitas, 2003, pp 108 - 109.
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