terça-feira, 21 de outubro de 2014




O problema, no caso de Eichmann, era que havia muitos como ele, e que estes muitos não eram nem perversos nem sádicos, pois eram, e ainda são, terrivelmente normais, assustadoramente normais. Do ponto de vista das nossas instituições e dos nossos valores morais, esta normalidade é muito mais aterradora do que todas as atrocidades juntas, pois ela implica (como foi dito inúmeras vezes em Nuremberga pelos réus e pelos seus advogados) que este novo tipo de criminoso, sendo, na realidade, um hosti humani generis, comete os seus crimes em circunstâncias tais  que lhe tornam impossível saber ou sentir que está a agir erradamente. (...) o único dado objectivo que permitiria, eventualmente, provar a má consciência dos réus era o facto de os nazis, e especialmente as organizações criminosas a que Eichmann pertencera, terem passado os últimos meses da guerra a destruir afincadamente as provas dos seus crimes. Ora isto, como prova, era insuficiente. Provava apenas que a lei dos assassinatos colectivos era demasiado nova para ser aceite e reconhecida pelas outras nações; ou, para usar a terminologia nazi, que eles tinham perdido a batalha para "libertar" a humanidade do "reino das espécies sub-humanas", e do domínio dos Sábios de Sião em particular; ou ainda, para usar uma linguagem corrente, provava apenas o reconhecimento da derrota. Ter-se-iam os nazis sentido culpados se tivessem ganho?(...) então a justiça do que se fez em Jerusalém teria emergido à vista de todos se os juízes tivessem ousado dirigir-se ao réu em termos como os seguintes:
" O senhor admitiu que o crime cometido contra o povo judaico durante a guerra foi o maior crime de toda a história, e admitiu também o seu o seu papel nele. Afirmou nunca ter agido por motivos vis (...) O senhor afirmou também que o seu papel na Solução Final foi um simples acaso e que qualquer outra pessoa poderia ter tomado o seu lugar, de modo que quase todos os alemães são, em potência, igualmente culpados (...) E como o senhor apoiou e executou uma política que consistia em não querer partilhar a Terra com o povo judaico e os povos de várias outras nações - como se o senhor e os seus superiores tivessem o direito de decidir quem deve e quem não deve habitar a Terra - pensamos que ninguém, nenhum ser humano, pode querer partilhar a Terra consigo. É por esta razão, e só por esta razão, que o senhor deve ser enforcado."


  Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém, uma reportagem sobre a banalidade do mal. Coimbra: Edições Tenacitas, 2003, pp 355 - 358.
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