sábado, 20 de junho de 2015



     Tive de esclarecer a amável estranheza de Q. sobre o meu gosto de não ser conhecida.
     Gosto e utilidade!
     Mas não esclareci nada.
     Tratava-se de atitudes literárias.
  Escrever assim como escrevo, sem qualquer ambição de notoriedade, parece-me extraordinariamente útil. Mas não o sei pôr em linguagem clara! Por isso me embrulhei em evasivas. Desnorteei Q., que com a sua galantaria de lisboeta e de letrado, uma galanteria muito especial, me convidava a aparecer. Não sei onde, nem como.
    Eu suponho, em boa verdade, que os anonimatos, que a folga e a inteligência dos anonimatos, se não podem definir bem. Que por si se justificam. Um anonimato é vital e elementar, espontaneamente útil; cobre as necessidades de cada um que o usa, esporádicas ou permanentes. Mas há quem tome o anonimato dos artistas por uma espécie de tarrafias, de gracinhas, de jogo ou de vaidade... E sê-lo-á!
    A mim, porém, qualquer coisa mais grave e mais indeterminada me tem levado a adoptar o anonimato, os pseudónimos. Talvez um subtil espírito utilitário, de defesa. De inversão da arrogância, da combatividade, também. De timidez, ou de fuga à necessidade intelectual, ainda... Não posso precisar perfeitamente o que seja! (...)
     Que significa um nome de autor? Nada! (...)
   A literatura teve sempre muito de aberrativa, de fantasista. Nomes, pseudónimos, têm absolutamente o mesmo valor das figuras e das localidades. Não valorizam as obras.
    E sendo a minha análise sempre tão cingida ao passageiro, sendo uma espécie de exploração da rápida eventualidade, não poderá admitir com sofrível elegância, com propriedade, a variedade dos pseudónimos?
   Este meu escrever sobre nadas , creio que até me chega a dar uma absoluta indiferença pelas categorias literárias! Me desinteressa de todo o rang e classe... Me inquina cada vez mais de uma corajosa e perversa paixão de liberdade
    Os pseudónimos não me encobrem dos profissionais das letras, naturalmente!
    Mas o mundo deles não é o meu...
   O meu, o que por mim se interessa, com boa ou ruim humanidade, não é de letrados nem de artistas, nem sequer de gente de boa sociedade. É de gente de letras grossas! Grosseira, talvez, mas nem melhor nem pior que a outra.
(...)
   Devo ser prudente. Com a minha gente é que me tenho sempre encontrado, dela é que eu sou um ruim e claudicante membro, mas ainda assim, não desprezado... Esquecê-lo, seria ingratidão.


  Lisboa, Irene. Obras de Irene Lisboa, Volume II - Solidão. Lisboa: Editorial Presença, 1992, pp 89 - 90.
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