domingo, 21 de junho de 2015

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  Sinto-me subitamente ferida, agastada. Não seria assim tão subitamente... Mas, enfim, uma bagatela, uma pinga a mais no vaso cheio fá-lo transbordar: dá corpo e força às minhas velhas fantasias de revolta...
  Mas a minha revolta é calma, calada, fica só comigo. Entretenho-me com pensamentos mais crus e concretos que os meus habituais, quase sempre flutuantes e desinteressados. Mais nada. Mas aos poucos sereno.
  Não, ninguém me quis molestar! Todo o meu mal é apenas de situação, um mal de acaso. É um mal sem consciência, o mal da miséria; absolutamente incerto, inocente e irresponsável. E por tudo isto vou readquirindo o meu ar distraído e indiferente. Filosófico.
  Mas a minha indiferença, fruto de uma vida anormal, desaproveitada, não consegue amortecer de todo uma certa curiosidade, um distractivo apetite de me confundir com os que me cercam, e de os julgar. Não consegue!
  E assim, vegetando tranquilamente quase a um canto, pressinto ou noto que todas as criaturas se encobrem e se defendem das suas próximas! Que nós, afinal, somos como as coisas ou como os detritos do mar: chocamo-nos e apartamo-nos continuamente, vivemos num puro, permanente jogo de escondias...
  Cada ser que vive é um mistério! A sua rota é obscura e sinuosa, sempre complicada...

  Lisboa, Irene. Obras de Irene Lisboa, Volume II - Solidão. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p 150.
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