sábado, 28 de novembro de 2015


SILÊNCIO E MARGINALIDADE NA POESIA DE GRAÇA PIRES

                                                Victor Oliveira Mateus

O novo livro de Graça Pires, Uma claridade que cega, afirma-se fundamentalmente como uma procura: “eu procuro de novo/ o princípio de tudo,” (p.10); “na marginalidade do sossego/ reacendo o lume…” (p.12); “escuto até à exaustão/ os rumores de um tempo mais remoto” (p.14). Vemos, portanto, que são específicas desta aventura poética três instâncias fundamentais: o sossego – muitas vezes aparecendo sob outras formas, como por exemplo a do silêncio -; a marginalidade, entendida esta não como uma vivência ostensivamente burguesa e urbana, mas tão-só como a rejeição de uma norma que impede a busca dessa claridade absoluta, fundamento do Ser e da escuta poética: “sou da estirpe dos aventureiros, dos caminhantes, dos fugitivos.” (p.30); “fujo na crina de um potro livre,/ sem jugo, em veloz cavalgada.” (p.40) e, finalmente, o alvo desta mesma procura metamorfoseado este na imagem da “fonte mais remota,/ onde a água tem o sabor/ do leite materno” (p.60). Esta associação sossego/silêncio, procura pela margem e propensão para a fonte originária ou, como neste livro se apresenta, para essa claridade que cega , tem sido uma constante na poética de Graça Pires: “nómada na noite, entro no coração do texto,/ para dizer o exílio nos olhos de Ulisses.” (in Uma certa forma de errância, 2003, p.43); “Um saber de dialectos nocturnos,/ permite-me riscar nos pulsos um silêncio de fuga.” (op. cit. p.51); “seguimos pela noite indiferentes/ a todos os ruídos que rebentam/ o rigor do silêncio.” (in Uma vara de medir o sol, 2012, p.69).
Vemos também que esta procura é não só uma inquirição em torno do princípio originário, dessa claridade primeira, como também um trabalho em torno da palavra para que dela seja removida toda a ganga do ruído e da inautenticidade:

“NOME:-
Interpelamos as palavras à procura de um nome para a casa
onde moramos. Um nome que se ajuste inteiro à memória
do olhar e do silêncio. Um nome tão secreto como as canti-
gas que as mães cantam baixinho enquanto embalam nos
braços os filhos e a noite para não perderem o poder de
repartir a sede.”

(in Caderno de Significados, 2013, p.21)

E a este almejar de uma claridade que cega, ou seja, desta beleza terrível, não é alheia a poesia de Rilke logo anunciada no quarto poema deste livro. Vejamos o que diz o poeta alemão:

“(…). Pois o belo apenas é
o começo do terrível, que só a custo o podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.”

(“A Primeira Elegia” in As Elegias de Duíno, Assirio & Alvim, 2002, p.39)


“Todo o Anjo é terrível. No entanto, ai de mim!
Pelo canto vos invoco, aves da alma quase mortais,
por saber o que sois. Para onde foram os dias de Tobias,
quando um de entre os mais luminosos apareceu, no simples limiar da entrada
(…)
Porém nós, ao sentir, desvanecemo-nos. Ai de nós,
ao respirar nos extinguimos; de brasido em brasido
vamos perdendo o nosso aroma. (…)”

(“A Segunda Elegia” in As Elegias de Duíno, Assírio & Alvim, 2002, p.47)

Esta antinomia Anjo/terribilidade, claridade/fulminação do olhar  na autora, alarga-a Graça Pires à presença de outros autores nomeadamente de Virgínia Woolf de quem a poeta diz, em dois versos que validam esta minha linha de leitura: “ As múltiplas faces da vida e da morte/ em diálogo secreto.” ( In Uma claridade que cega, 2015, p 35). Há ainda uma outra convergência com a romancista inglesa: em Mrs Dalloway , Clarissa Dalloway interroga-se frequentemente sobre o seu passado, o seu presente e o futuro, ora estas dimensões da temporalidade trespassam todo o livro de Graça Pires, aliás, este jogar no tempo é frequente em Virgínia woolf, veja-se, por exemplo, outro romance seu: Orlando , que, baseado na vida de Vita Sackville-West, narra a história de um jovem que certo dia acorda mulher e dotado de imortalidade, Orlando acompanha mais de três séculos da vida dessa personagem. Vemos, por conseguinte, que Clarissa Dalloway ( o livro narra apenas um dia da sua vida) vive entre a felicidade e a ideia de suicídio, Orlando entre a imortalidade e o efêmero rotineiro, ou seja, ambos desenham a sua errância entre um polo positivo e outro negativo, tal como este livro de Graça Pires entre a claridade e a cegueira. Não é despiciendo enfatizar  também aqui a riqueza imagística das autoras: a de Virgínia Woolf deu azo a riquíssimas obras de arte, como por exemplo o romance As Horas de Michael Cunningham, que, por sua vez originou o filme homónimo (2002) de Stephen Daldry com as soberbas interpretações de Maryl Streep, Nicole Kidman e Julianne Moore e ainda a película Orlando (1992) de Sally Potter com o andrógino desempenho de Tilda Swinton. Já as imagens da poesia de Graça Pires, com a sua sobrevalorização do telúrico e/ou do aquífero, bem como o chamar à liça do afetivo e do emocional, entroncando, portanto, em Pascoaes, Torga, Sophia,  Nuno Júdice e algum Ruy Belo, mas  recusando as escritas mais debruçadas sobre as vivências citadinas, corre o risco de – com as suas águas, as suas gaivotas, as suas estevas, a sua urze, etc. - , numa leitura apressada, serem remetidas para um filo passadista, todavia, uma leitura cuidada desta escrita verificará que o que existe é todo um paradigma de referentes ao serviço de intentos outros – exemplo: falar-se do envelhecimento em Outono: Lugar Frágil  (1994), dessa Odisseia que é o estar-aqui em Uma certa forma de errância ( 2003), da falsa oposição que existe entre o trabalho braçal e doméstico relativamente ao aperfeiçoamento moral e religioso em não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos (2007), etc. Um terceiro, e último, diálogo que Graça Pires mantém é com Pablo Neruda: “Hoje, que não escuto o mar/ fujo na crina de um potro livre,/ sem jugo, em veloz cavalgada. Tenho nos olhos um incêndio tangível(…)/ Doeu-me a voz quando bradei,/ sem fôlego, o verso de neruda:/ quero inventar o mar de cada dia.” , a abordagem da realidade material,  do sócio-económico, na poesia de Graça Pires é sempre feita de forma subtil, mas, paradoxalmente, forte: “Há por todo o lado palcos improvisados/ onde, em bocas distorcidas, se anunciam/ perigos e presságios, ameaças e avisos./ Este é um país de sombras tão baldias que magoa. “ (p28): “ Cravo as unhas na carne da indiferença./ Escrevo sangue/ com o lápis gasto pela culpa acorrentada/ à cegueira que desfoca os olhares/(…)/ Leio dor. Dolorosamente./ Em lugares desabrigados,/ em portas franqueadas aos rasgões/ da vida rondada pela morte.” (p 33), não estamos – nestes versos – longe de tantos poemas de Nazim Hikmet ou do Canto Geral de Neruda, onde podemos ler: “Mas tu não sofreste? Não, eu não sofri. Eu sofro/ apenas os sofrimentos do meu povo. Eu vivo/ dentro, no interior da minha pátria, célula/ do seu infinito e abrasado sangue. “ ( In Canto Geral, Campo das Letras, 1998, p 480, tradução de Albano Martins).
 O presente livro de Graça Pires ousa ainda três áreas estreitamente conectadas com tudo aquilo de que tenho vindo a falar: o plano do existencial e do dia-a-dia, o da inquirição da palavra e da poesia e, finalmente, um plano metafísico onde a esperança e o sonho teem um papel fundamental. Acerca desse primeiro plano leia-se o poema da página 39 da presente obra:

Só folheio os jornais de vez em quando.
Quase tudo o que se escreve
são golpes confusos
que abrem nas entranhas a impressão
de um mundo por entender.
A verdade chega-nos apenas
através do silêncio dos que sonharam
um tempo sem estas ruínas
que descarnam e sepultam
a mais valiosa esperança.

Este poema ilustra na perfeição o que temos vindo a dizer: primeiro, estabelece a distinção entre aparências (golpes confusos, mundo por entender) e a busca da verdade, isto é, da claridade que cega ; segundo, reafirma a importância do silêncio e do sonho para bem entender e agir, convém, no entanto, acrescentar que o sonho nunca é, na poesia de Graça Pires, sinónimo de devaneio ou alienação, ele surge sempre ou como capacidade da memória ao serviço da rememoração e do conhecer ou – como aqui – como rasgo da imaginação que alimenta a praxis ; terceiro, a recusa da poeta em integrar o coro das ruínas , em integrar o número daqueles que descarnam a esperança e a ousadia, daí o já referido colocar-se à margem da voracidade da turbamulta, daí também o termo marginalidade que usei no título deste texto ; quarto e último, a distinção acenada no sexto verso: a Graça Pires não interessam as certezas  tão operativas e eficazes nas ciências e tão úteis nos registos de tipo jornalístico, à autora importa a verdade , dito de outro modo: os seus olhares antropológico e histórico aparecem sempre alicerçados numa visão ética, assim como o sociológico se curva ante o metafísico, numa frontal recusa do injusto e do mal, entendido este no seu sentido radical: “Este mal é radical, a partir do momento em que corrompe o fundamento de todas as máximas (morais).” (Kant, In A Religião dentro dos Limites da Simples Razão , Ak.Ausg., VI). Por tudo isto, competirá à Palavra, ou melhor, à Poesia, conduzir-nos neste caminho iluminante, competirá a ela assumir-se plenamente como Uma claridade que cega. 

O verbo: clareira em cama de fenos
ou ilha oculta de ocultos silêncios.
Como se o nervo do vento
fustigasse a voz dos poetas
esmagando a rigidez dos sons.
Apta a declinar as regras do jogo
retenho, nas arestas da página,
o som do lápis, como um pião
rodopiando traços inseguros.
A película de imagens no interior do texto,
levemente aberto ao segredo das mãos
deixa que me habite um desvario
que faça regressar um verso invisível.


    ( In Uma claridade que cega, p 43)


 Livraria Ferin - Lisboa, 28 de novembro de 2015.
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