V.
Hoje é o dia das catástrofes assumidas. Do infortúnio a germinar como árvore
de frutos nodosos e secos. É o negro dia dos sem remédio, de todos quantos se
arrastam sem caminho nem valimento e que depois, ávidos de fim, se encostam às
paredes mais obscuras na gorada espera de qualquer passagem. É o tempo das
escritas sem entranhas, do tropel das imagens a encavalitarem-se umas nas
outras na encenação de um dentro que nunca tiveram, para que seus parlamentares
e escribas, de camisa preta e facho na mão, possam finalmente imitar as marchas
de 39 pelas ruas de Roma. Hoje é o dia das catástrofes assumidas, das fronteiras
delimitadas com um giz preto feito com as cinzas de Birkenau, para que o topo
seja mais topo na ilusão de um chapéu de três bicos, de um azorrague bem untado
ou de uma fileira de prateleiras e tronos para o assentamento dos camisas
pretas na sua pose de casacos coçados e com o dedo grande dos pés a escapar-se
dos sapatos cambados e sem protetores. Hoje é o dia dos que espreitam prontos a
avançar e daqueles que avançam, mas, sem espreitar, lhes vão assim abrindo o
caminho. Este é o dia em que não entro, o dia de uma negritude que recuso,
enquanto os olhos me fogem pelo tampo branco da mesa na invenção de um outro
tempo resplandecente e de uma outra qualquer cidade que não me tenha por
vendilhão nem cúmplice.
Mateus, Victor Oliveira. Negro Marfim. Fafe: Editora Labirinto, 2015, p 16 ( Prefácio: Miguel Real; Inventário de Inquietações: Texto de Ronaldo Cagiano).
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