sábado, 4 de fevereiro de 2017


   E por que razão não lhe viera esta ideia mais cedo? Quando chegou o momento, quando lhe veio finalmente esta ideia, o peso que o esmagara durante dias, não, semanas, desapareceu de repente como se, na realidade, tivesse sido apenas um minúsculo grão de areia, fazendo-se um espaço livre para outros pensamentos, pensamentos claros, pensamentos libertadores. Bastaria assim um único pensamento novo, no fundo perfeitamente simples, para que tudo aparecesse iluminado por uma nova luz; era portanto esta a solução, uma súbita inspiração que aliás devia ser rapidamente convertida em acção. Era como se ele se tivesse subitamente tornado adulto.
   E ao surgir este pensamento, Jakob foi afastado para uma distância tolerável. A sua imagem não desapareceu por completo, mas perdeu nitidez, deixou de lhe obstruir o caminho. Erneste passou a estar sozinho. Só precisava de seguir a ordem correcta para fazer aquilo que era preciso fazer, e tudo o resto acabaria por se resolver. Tinha de sentar-se à mesa da cozinha, colocar nela uma folha de papel, agarrar numa esferográfica e escrever a Jakob, dizendo-lhe que resolvera não telefonar a Klinger, que decidira não o procurar, não lhe pedir nada, porque estava a viver a sua própria vida e nem Jakob nem Klinger tinham qualquer lugar nessa nova vida, nem tu, Jakob, nem aquele que te acariciou, te raptou, te roubou, te afastou de mim, tu seguiste-o e portanto continua a segui-lo, segue-o a ele, continua a depender dele, não confies em mim, sê o seu criado, não confies na minha ajuda, sê aquilo que lhe pertence a ele, abandonaste-me para sempre, agora sou eu que te abandono para sempre, acaba de acontecer aquilo em que, até agora, me recusava a acreditar, finalmente desapareceste da minha vida, para sempre, e isto é um alívio.
   As frases que queria escrever-lhe começavam a ganhar corpo. No entanto, ganhavam corpo a uma velocidade tão grande e eram tantas as frases que rapidamente descobriu que não seria capaz de as memorizar. Iam crescendo e quanto mais longas se tornavam, menos as compreendia, e o que ele não compreendia, Jakob entenderia ainda muito menos.


  Sulzer, Alain Claude. Um criado exemplar. Lisboa: Quidnovi, 2007, pp 71-72.
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