Geometrização e impermanência na poesia de
Alberto Riogrande
VICTOR OLIVEIRA MATEUS
O
presente livro de Alberto Riogrande, Geometria
do Fogo, joga, logo neste seu
título, com uma
antinomia fundamental que se apresenta como princípio estruturante de toda a
obra: por um lado, a necessidade de entender, de geometrizar a vida afetiva e erótica (cf. Sumário, versos 1-6), por outro, o devir das paixões e dos desejos
quase sempre excessivos, turbilhonares e cíclicos (cf. Última Fronteira)
simbolizados pelo fogo. Este último é, de entre todos os fenómenos, na cultura
do ocidente, “o único que pode aceitar as duas valorações opostas: o bem e o
mal. Brilha no paraíso. Arde no inferno. É doçura e tortura. É cozinha e
apocalipse”. (Bachelard. A psicanálise do
fogo, Estúdios Cor, 1972, p. 21). Aliás, esta dualidade lógico-semântica,
inexistente nos pensadores gregos originários, mas não nos que se lhes
seguiram, viria a aprofundar-se com a instauração do cristianismo como religião
dominante, assim, o fogo poderá adquirir agora uma conotação positiva (cf. Lucas 3:16; Atos 2:1) ou uma outra negativa (cf. Apocalipse 8:7).
A distinção anteriormente referida aparece
no livro de Alberto Riogrande submetida a um itinerário peculiar, pois o
absoluto, o eterno e o permanente são alvos visados (cf. Gravado na pedra, último verso; Infinito
possível, verso 7; Casta Diva,
verso 18), mas nunca pela recusa ou omissão do corpo, do desejo e da
sexualidade, antes pelo contrário, o que urge levar a cabo é a assunção destes,
liberta agora de espartilhos de qualquer ordem. O erotismo deste livro surge
invariavelmente de uma forma excessiva (cf. Geometria
do fogo, verso 1; Império dos sentidos,
versos 1-3; A sede do mundo; A última sílaba, versos 13-15),
intimamente ligado às palavras (cf. Dizer
o amor; Significados imperfeitos;
Código da pele), mas nunca perdendo a
poeticidade que o ato amoroso encerra e onde a Amada, aparentemente secundarizada
pela omnipresença de um eu poético masculino, jamais deixa o centro desta
constelação (cf. Mulher-pássaro,
último verso; Margem inclinada: “ A
totalidade das coisas/está no teu corpo/(...) O calendário é o teu corpo”), simultaneamente
amorosa e arrebatada, são mesmo vários os poemas com explícitas alusões a um
dado tipo de religiosidade (cf. De
profundis; Santuário; Sacerdotisa). O fogo é, por conseguinte,
a imagem de todo o acontecer de um universo erótico, no entanto, ele
apresenta-se com uma quádrupla função: multiplica-se por si próprio (cf. Poema imperfeito), é partilhável (cf. Ninguém, meu amor; Pedro e Inês), é excessivo e ilustra uma correspondência entre o
território de Eros e o mundo natural:
(...) Não quero a
noite nos meus braços,
quero o teu sangue
correndo no meu,
sentir os teus seios
erguidos
baloiçando na minha
fronte
como espigas de trigo
na brisa quente de
Maio,
barro fresco
que vamos moldando na
teia que o tempo quer.
(in E tudo se prolonga)
O dialogismo entre o fogo e o território das
paixões tem sido enfatizado na poesia portuguesa contemporânea (cf. Ana Mafalda
Leite. Livro das Encantações, Caminho,
2015, pp 53, 56 e 59; Alberto Pereira. Poemas
com Alzheimer, Glaciar, pp 28 e 42), bem como na de países de língua
oficial portuguesa (cf. Hilda Hilst. Do
desejo, Globo, 2004, pp 24 e 49), contudo, no presente livro de Alberto
Riogrande a pluralização das ambiências
conduz-nos a duas conclusões inextricáveis: a geometrização, tal como nos aparece no título da obra e vista como
a capacidade de apreender – e talvez prender – o fogo é, em si própria, ingente
e impossível (“Dança sem fim, o teu corpo peregrina na tempestade/ que vem
gritada da espuma, avenida imaginária, até se gravar nos dedos sonhadores/(...)
o corpo em desafio,/ no festim do desejo/ golfado sobre uma tela sem fim.” In, Dança de luz ), apesar desta
impossibilidade, desde o início intuída pelo poeta, esta geometrização manter-se-á sempre como horizonte que urge alcançar,
o que faz com que esta escrita adquira marcas de uma religiosidade de cariz
simultaneamente orgiástico ( “No capot
do teu carro gritámos sob o luar./ Sob a lua cheia, no capot do teu carro,/
tapete de palavras e promessas/(...) gritámos a aurora a primavera,/ o cio como
cães desvairados” In, Gravado na pedra )
e espiritualizante (“Vamos caminhando pelo interior das veias/ o tempo parece
suspenso,/(...) mas ela veio connosco,/ a viagem com alma/ pelo desconcerto da
paixão.” In, Muito além ); a segunda
conclusão prende-se com o facto de estarmos ante um monismo a que, regra geral,
é alheio o pensar ocidental e onde, não só a multiplicidade e unidade se
confundem (“ O amor é um plural grandioso./ Trazes-me a intensidade/ que eu não
sei definir/ toda a luz na pureza original/(...) Barca de mil sóis, habitaremos
as folhas/ mortas no dorso em fogo,/ átomos caídos no regresso à terra
gritada.” In, Plural ), como também o
corpo, os sentidos, a metafísica e as artes (são inúmeras as referências a
procedimentos cinematográficos e a títulos de películas, bem com a danças, como
por exemplo o tango) se entregam a uma original miscigenação cujo alvo é o
instante absolutizado no supremo gesto da entrega e da partilha, acabando-se assim por concluir que a geometrização do fogo jamais poderá ser
da ordem de uma qualquer racionalização explicativa, mas tão-só (ou acima de
tudo?) um ígneo vivenciar do fluir, talvez contingente e sempre retomado, mas
seguramente perfeito :
No teu corpo, terra
abundante
das sílabas cruas
que o sangue
transforma em luz
perpétua
voamos para um céu
onde o sol se dobra
e adormece no teu
peito,
rasgado
na perfeição urgente
do grito.
No
teu corpo
É neste esteticizar do ato amoroso e do
território do desejo que poderemos aproximar a poesia de Alberto Riogrande de
alguns dos grandes nomes da lírica amorosa contemporânea como Maria Teresa
Horta, Casimiro de Brito e Gonçalo Salvado, afastando-se ele, no entanto, destes,
pelo modo, por vezes explícito, como o fogo
surge aqui associado a uma motivação primária e a um solo arquetípico
designado por Bachelard por Complexo de
Novalis: “Se expurgássemos a obra de Novalis das intuições do fogo
primitivo, parece que toda a poesia e todos os sonhos desapareceriam ao mesmo
tempo.(...) O complexo de Novalis sintetizaria
pois a atração para o fogo provocado pela fricção, e necessidade de um calor
partilhado.(...) reconstituiria, no seu primitivismo exato, a conquista
pré-histórica do fogo. “ ( Bachelard. A
psicanálise do fogo. Estudios Cor, 1972, p 75) , são, por conseguinte, estes
laivos daquilo que no ser humano é inaugural, inicial e até mesmo iniciático, e
que se exterioriza abundantemente no erotismo poético de Alberto Riogrande, que
se acaba por marcar, para lá de toda a designação referida, a riqueza deste
dizer poético como um infindável rumor
primário do sangue que sempre alimentará o poeta e o fogo, que os amanhecerá ininterruptamente,
refreando assim uma qualquer geometrização
absoluta do passional e fazendo deste livro uma bem conseguida urdidura,
bem como uma exímia paráfrase dos versos de Pedro Garfías Zurita: “ Ó, Fogo,
irmão fogo:/ olhar, apenas olhar a tua pura chama/ impetuosa e perpetuamente
renovada/ dá vigor às minhas asas e às minhas vozes.” ( In Alquimia del fuego, Amargord, 2014, p 57).
( Pré-publicação)