domingo, 18 de janeiro de 2015



Nota - Do poema "Uivo" existiam já, em português (de Portugal), duas traduções: a de José Palla e Carmo publicada pela D. Quixote (1973) e a de Paula Ramalho Almeida publicada pela Quasi (2003). Este longuíssimo poema viu a luz do dia, pela primeira vez, em 1956 nos EUA, mas foi logo apreendido e julgado em tribunal num processo que se arrastou por imenso tempo. Vários foram os poetas e os académicos que tentaram provar nesse mesmo tribunal que não se estava perante um poema obsceno. O texto é dedicado por Allen Ginsberg ao poeta Carl Solomon com quem ele manteve um relacionamento estreito. No entanto, a data de publicação deste livro coincide com o encontro entre Ginsberg e Peter Orlovsky, que viria a ser o seu companheiro até 1997, data da morte do próprio Ginsberg. A foto acima, de Ginsberg com o poeta Orlovsky foi tirada em Paris em 1956. O poema "Uivo" tornar-se-ia, depois, o mais lídimo representante da poesia saída do movimento beat e o livro de poesia mais lido nos EUA. Os excertos que se seguem fazem parte da excelente tradução feita por Margarida Vale de Gato, em 2014.
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                 "   UIVO   "
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          Para Carl Solomon
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Eu vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela
    loucura, famintas histéricas nuas,
a arrastarem-se na aurora pelas ruas de negros em busca de uma
    dose feroz. (...)
solidezes de átrios sob peiote, madrugadas sepulcrais de árvores
    verdes de quintais, bebedeira de vinho nos telhados, mon-
    tras de bairros comerciais a tripar com a moca do semáforo
    piscando de néon, vibrações de sol e lua e árvores nos cre-
    púsculos de inverno e vendavais de Brooklyn, vociferações
    sobre latas de cinza e lixo e o sopro brando soberano fulgor
    da mente. (...)
que estudavam Plotino São João da Cruz telepatia e cabala-
    -pop visto que o cosmos vibrava instintivamente aos seus
    pés no Kansas,(...)
que se espraiavam famintos e solitários por Houston buscando
    jazz ou sexo ou sopas, e iam atrás do deslumbrante latino
    para conversar sobre a América e a Eternidade, uma tarefa
    inútil, pelo que embarcavam para África.(...)
que queimavam buracos de cigarros nos braços a protestar contra
    a tabágica neblina narcótica do Capitalismo.(...)
que se debulhavam em lágrimas em ginásios brancos nus e tre-
    mendo diante da maquinaria dos outros esqueletos,
que mordiam o pescoço de agentes da polícia e guinchavam de
    prazer nos carros da polícia por não cometerem crime que
    não fosse a sua própria pederastia e intoxicação a fervilhar
   de loucura,(...)
que deixavam que motociclistas devotos lhes comessem o cu e
urravam de alegria,
que chupavam e eram chupados por esses serafins humanos, os
    marinheiros, carícias de amor atlântico e caribenho,(...)
que melavam as pássaras de um milhão de miúdas estremecentes
    ao pôr do sol, e de manhã tinham os olhos vermelhos mas a
    postos de melar a pássara da aurora, de nádegas ao léu de-
    baixo dos celeiros e nus dentro do lago,(...)
ah, Carl, enquanto não estiveres a salvo eu não estou a salvo, e
    agora nadas realmente na canja absoluta do tempo - (...)
Carl Solomon! Estou contigo no manicómio de Rockland
    onde estás mais doido do que eu (...)
Estou contigo em Rockland
    onde imitas a sombra da minha mãe(...)
Estou contigo em Rockland
    onde somos grandes escritores na mesma terrível máquina
    de escrever(...)
Estou contigo em Rockland
    nos meus sonhos caminhas a escorrer de uma viagem marí-
    tima pela grande estrada através da América em lágrimas
    até à porta da minha cabana na noite ocidental.


   Ginsberg, Allen. Uivo e Outros Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2014, pp 15 - 37 ( Tradução e Notas de Margarida Vale de Gato).
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