terça-feira, 13 de janeiro de 2015


   Geometrização e impermanência na poesia de Alberto Riogrande

 

                                                                 VICTOR  OLIVEIRA  MATEUS

   

 

 

    O presente livro de Alberto Riogrande, Geometria do Fogo, joga, logo   neste         seu

título, com uma antinomia fundamental que se apresenta como princípio estruturante de toda a obra: por um lado, a necessidade de entender, de geometrizar a vida afetiva e erótica (cf. Sumário, versos 1-6), por outro, o devir das paixões e dos desejos quase sempre excessivos, turbilhonares e cíclicos (cf. Última Fronteira) simbolizados pelo fogo. Este último é, de entre todos os fenómenos, na cultura do ocidente, “o único que pode aceitar as duas valorações opostas: o bem e o mal. Brilha no paraíso. Arde no inferno. É doçura e tortura. É cozinha e apocalipse”. (Bachelard. A psicanálise do fogo, Estúdios Cor, 1972, p. 21). Aliás, esta dualidade lógico-semântica, inexistente nos pensadores gregos originários, mas não nos que se lhes seguiram, viria a aprofundar-se com a instauração do cristianismo como religião dominante, assim, o fogo poderá adquirir agora uma conotação positiva (cf. Lucas 3:16; Atos 2:1) ou uma outra negativa (cf. Apocalipse 8:7).

     A distinção anteriormente referida aparece no livro de Alberto Riogrande submetida a um itinerário peculiar, pois o absoluto, o eterno e o permanente são alvos visados (cf. Gravado na pedra, último verso; Infinito possível, verso 7; Casta Diva, verso 18), mas nunca pela recusa ou omissão do corpo, do desejo e da sexualidade, antes pelo contrário, o que urge levar a cabo é a assunção destes, liberta agora de espartilhos de qualquer ordem. O erotismo deste livro surge invariavelmente de uma forma excessiva (cf. Geometria do fogo, verso 1; Império dos sentidos, versos 1-3; A sede do mundo; A última sílaba, versos 13-15), intimamente ligado às palavras (cf. Dizer o amor; Significados imperfeitos; Código da pele), mas nunca perdendo a poeticidade que o ato amoroso encerra e onde a Amada, aparentemente secundarizada pela omnipresença de um eu poético masculino, jamais deixa o centro desta constelação (cf. Mulher-pássaro, último verso; Margem inclinada: “ A totalidade das coisas/está no teu corpo/(...) O calendário é o teu corpo”), simultaneamente amorosa e arrebatada, são mesmo vários os poemas com explícitas alusões a um dado tipo de religiosidade (cf. De profundis; Santuário; Sacerdotisa). O fogo é, por conseguinte, a imagem de todo o acontecer de um universo erótico, no entanto, ele apresenta-se com uma quádrupla função: multiplica-se por si próprio (cf. Poema imperfeito), é partilhável (cf. Ninguém, meu amor; Pedro e Inês), é excessivo e ilustra uma correspondência entre o território de Eros e o mundo natural:

 

(...) Não quero a noite nos meus braços,

quero o teu sangue correndo no meu,

sentir os teus seios erguidos

baloiçando na minha fronte

como espigas de trigo

na brisa quente de Maio,

barro fresco

que vamos moldando na teia que o tempo quer.

 

         (in E tudo se prolonga)

 

   O dialogismo entre o fogo e o território das paixões tem sido enfatizado na poesia portuguesa contemporânea (cf. Ana Mafalda Leite. Livro das Encantações, Caminho, 2015, pp 53, 56 e 59; Alberto Pereira. Poemas com Alzheimer, Glaciar, pp 28 e 42), bem como na de países de língua oficial portuguesa (cf. Hilda Hilst. Do desejo, Globo, 2004, pp 24 e 49), contudo, no presente livro de Alberto Riogrande a pluralização das ambiências  conduz-nos a duas conclusões inextricáveis: a geometrização, tal como nos aparece no título da obra e vista como a capacidade de apreender – e talvez prender – o fogo é, em si própria, ingente e impossível (“Dança sem fim, o teu corpo peregrina na tempestade/ que vem gritada da espuma, avenida imaginária, até se gravar nos dedos sonhadores/(...) o corpo em desafio,/ no festim do desejo/ golfado sobre uma tela sem fim.” In, Dança de luz ), apesar desta impossibilidade, desde o início intuída pelo poeta, esta geometrização manter-se-á sempre como horizonte que urge alcançar, o que faz com que esta escrita adquira marcas de uma religiosidade de cariz simultaneamente orgiástico  ( “No capot do teu carro gritámos sob o luar./ Sob a lua cheia, no capot do teu carro,/ tapete de palavras e promessas/(...) gritámos a aurora a primavera,/ o cio como cães desvairados” In, Gravado na pedra ) e espiritualizante (“Vamos caminhando pelo interior das veias/ o tempo parece suspenso,/(...) mas ela veio connosco,/ a viagem com alma/ pelo desconcerto da paixão.” In, Muito além ); a segunda conclusão prende-se com o facto de estarmos ante um monismo a que, regra geral, é alheio o pensar ocidental e onde, não só a multiplicidade e unidade se confundem (“ O amor é um plural grandioso./ Trazes-me a intensidade/ que eu não sei definir/ toda a luz na pureza original/(...) Barca de mil sóis, habitaremos as folhas/ mortas no dorso em fogo,/ átomos caídos no regresso à terra gritada.” In, Plural ), como também o corpo, os sentidos, a metafísica e as artes (são inúmeras as referências a procedimentos cinematográficos e a títulos de películas, bem com a danças, como por exemplo o tango) se entregam a uma original miscigenação cujo alvo é o instante absolutizado no supremo gesto da entrega e da partilha,  acabando-se assim por concluir que a geometrização do fogo jamais poderá ser da ordem de uma qualquer racionalização explicativa, mas tão-só (ou acima de tudo?) um ígneo vivenciar do fluir, talvez contingente e sempre retomado, mas seguramente perfeito :

 

No teu corpo, terra abundante

das sílabas cruas

que o sangue

transforma em luz perpétua

voamos para um céu

onde o sol se dobra

e adormece no teu peito,

rasgado

na perfeição urgente do grito.

 

        No teu corpo

 

   É neste esteticizar do ato amoroso e do território do desejo que poderemos aproximar a poesia de Alberto Riogrande de alguns dos grandes nomes da lírica amorosa contemporânea como Maria Teresa Horta, Casimiro de Brito e Gonçalo Salvado, afastando-se ele, no entanto, destes, pelo modo, por vezes explícito, como o fogo surge aqui associado a uma motivação primária e a um solo arquetípico designado por Bachelard por Complexo de Novalis: “Se expurgássemos a obra de Novalis das intuições do fogo primitivo, parece que toda a poesia e todos os sonhos desapareceriam ao mesmo tempo.(...) O complexo de Novalis sintetizaria pois a atração para o fogo provocado pela fricção, e necessidade de um calor partilhado.(...) reconstituiria, no seu primitivismo exato, a conquista pré-histórica do fogo. “ ( Bachelard. A psicanálise do fogo. Estudios Cor, 1972, p 75) , são, por conseguinte, estes laivos daquilo que no ser humano é inaugural, inicial e até mesmo iniciático, e que se exterioriza abundantemente no erotismo poético de Alberto Riogrande, que se acaba por marcar, para lá de toda a designação referida, a riqueza deste dizer poético como um infindável rumor primário do sangue que sempre alimentará o poeta e o fogo, que os amanhecerá ininterruptamente, refreando assim uma qualquer geometrização absoluta do passional e fazendo deste livro uma bem conseguida urdidura, bem como uma exímia paráfrase dos versos de Pedro Garfías Zurita: “ Ó, Fogo, irmão fogo:/ olhar, apenas olhar a tua pura chama/ impetuosa e perpetuamente renovada/ dá vigor às minhas asas e às minhas vozes.” ( In Alquimia del fuego, Amargord, 2014, p 57).



  ( Pré-publicação)