sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Daniel J. Skråmestø:     Olhos de Cão











   O Carlos conheci-o no Frágil em 92. Amigo de um amigo de um amigo. Já nem me lembro de quem é que nos apresentou um ao outro. Só sei que às tantas estávamos a falar do Pasolini, do Morte em Veneza, do Visconti...
   Tinha lido Thomas Mann, veja lá! Eu nunca tinha conhecido ninguém que lesse Thomas Mann. E Proust. E Wilde... Gide, também, e Genet.
   Viemos aqui para casa. Pusemos Mahler e depois adormecemos abraçados, sem sequer um beijo, veja lá, aqui mesmo, neste sofá.
   Quando acordámos de manhã estava esquisito. Não quis tomar o pequeno-almoço. Não falava.
   Perguntei-lhe se me deixava o telefone. Respondeu que não, que era melhor não, que era casado. E saiu daqui de casa sem dizer adeus.
(...)
   Voltei ao Frágil na semana a seguir. Não estava propriamente à procura dele mas dei por mim a procurá-lo na pista e no bar. Apareceu. A primeira coisa que me disse foi, ainda bem que viestes, queria pedir-te desculpa.
   Quis ir para a minha casa para conversar. Eu disse que não. Então ao menos saímos daqui, está bem?
   Acabámos no Miradouro de São Pedro, a olhar para o castelo. Descemos ao jardim lá em baixo que estava deserto. Encostou-me ao muro, a hera a espetar-se-me nas costas e beijou-me quase com desespero.
   E a tua mulher? - perguntei.
   Eu não a amo.
   E a mim?
   Esteve calado muito tempo, olhou para o castelo e depois para mim.
   A ti talvez consiga.


  Skråmestø, Daniel J. Olhos de Cão. Lisboa: Dom Quixote, 2003, pp 75 - 79.
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