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Richard Zimler é um escritor
norte americano naturalizado português, nascido em Roslyn Heights, Nova Iorque.
Formado em Religião Comparativa pela Universidade de Duke (1977) e mestre em
Jornalismo pela Universidade de Stanford (1982), Zimler radicar-se-ia em
Portugal em 1990 - tendo depois obtido a nacionalidade portuguesa em 2002 -,
país onde tem desenvolvido uma atividade plurifacetada: docente na Universidade
do Porto, argumentista para cinema, literatura infantil, etc., mas é sobretudo
como romancista que o seu nome tem vindo a alcançar uma incontestável projeção.
Da sua obra literária, sobejamente premiada, ressaltam títulos como: “O Último
Cabalista de Lisboa” (1996), “Goa ou o Guardião da Aurora” (2005), “Os
Anagramas de Varsóvia” (2009), “O Evangelho Segundo Lázaro” (2016). O seu
último romance, agora publicado no Brasil, deu azo à conversa que se apresenta aqui
entre o poeta Victor Oliveira Mateus e o romancista Richard Zimler.
VOM – Os seus romances colocam em lugar de destaque a relação do homem
com a Cultura, bem como a História, contudo, esta última não se restringe a uma
função puramente descritiva, nos seus romances. Pensa que falar do Passado, ou
dar dele uma interpretação própria, é importante para compreender o Presente e,
em certa medida, projetar uma certa visão do Futuro?
RZ – Adoro escrever sobre o passado, em parte porque é um desafio
enorme perceber a maneira de pensar de pessoas que viveram há duzentos anos ou
mil anos e transmitir essa compreensão numa narrativa emotiva e inteligente. No
caso do meu primeiro romance, “O Último Cabalista de Lisboa”, tive de entrar na
pele de Berequiais Zarco, um jovem judeu que vivia em Lisboa no princípio do
Século XVI. Ao fazer a pesquisa para o livro – durante um ano inteiro –
descobri que Berequias e os seus familiares nem sempre teriam partilhado a
nossa perspetiva sobre as questões mais importantes da vida: por exemplo, o que
acontece depois da morte, ou qual a relação entre sexo e amor, ou ainda qual a
função da religião numa dada sociedade. Gostei muito da experiência de contar
uma história do ponto de vista de alguém muito diferente de mim e achei fascinante
tentar conta-la fiel aos valores e crenças de uma
outra época, e, ao mesmo tempo, fazer despertar emoções fortes no leitor actual
– conseguir criar uma relação afectiva e complexa entre um residente de São
Paulo, por exemplo, e um jovem lisboeta que teria morrido há quinhentos anos. Aprecio
muito quando me cruzo com um desconhecido numa rua de Lisboa ou do Porto e ele
me agradece ter escrito um romance e diz ter adorado dado narrador e dadas
outras personagens, porque a magia profunda de um romance reside na sua
capacidade de estabelecer uma empatia entre o leitor e uma personagem e através
dessa relação fazer com que alguém examine o seu passado e o presente numa
perspetiva diferente. Penso que um autor com talento consegue fazer isso,
porque as emoções são universais e quase intemporais. Digo quase, porque ao
fazer a pesquisa para “O Evangelho Segundo Lázaro” descobri, por exemplo, que a
honra era, há 2000 anos, um sentimento ou valor crucial e hoje em dia, no
Ocidente, praticamente esse valor desapareceu. Mesmo assim, temos amplas provas
da existência de sentimentos como o amor, a paixão, o ciúme, o ódio e grande parte
de outras emoções no “Velho Testamento” e em livros muito antigos como o “Asno
de Ouro”, do autor romano Lucius Apuleius. E temos provas também de que as
consequências destas emoções – desde a amizade à traição e à crueldade – eram
tão comuns no tempo do Império Romano como hoje em dia, basta pensar no
assassinato de Júlio César e na própria crucificação de Jesus. Por isso, um bom
romance histórico pode obrigar o leitor a pensar em assuntos muito actuais. No
meu novo romance, as personagens debruçam-se sobre a repressão da mulher, e
sobre a discriminação de pessoas com diferentes crenças. Daí a ligação com o futuro
a que o Victor se refere, porque, no caso de vários livros meus, o narrador
deseja um mundo mais justo e luta para atingir esse objectivo. Em “O Evangelho
Segundo Lázaro” existe um desejo enorme por parte deste e de Jesus de renovar o
mundo, de obrigar os Romanos a deporem as armas, de criar uma sociedade baseada
na compaixão e não na dominação. Isso é muito claro no “Novo Testamento”, nos
Evangelhos Gnósticos e é ainda hoje o desejo de muita gente. Quando é que
iremos conseguir um mundo igualitário baseado na solidariedade? Quantos milhões
de pessoas mais terão de morrer para vivermos todos livres de perseguições?
VOM – Em “O Evangelho Segundo Lázaro”, romance agora publicado no
Brasil, as personagens são cuidadosamente caraterizadas, e estou a lembrar-me
de Anás, o antigo Sumo Sacerdote, das irmãs de Lázaro, do relacionamento de
Lázaro com Jesus. Poderemos dizer que a sua obra romanesca tem também por
função, entre muitas outras, esmiuçar valores e comportamentos do mundo
contemporâneo, no caso agora referido o fanatismo e a relação com o corpo?
RZ – Um dos propósitos do meu romance era devolver a Jesus e às
outras personagens o seu judaísmo. Daí o uso dos nomes hebraicos no livro.
Jesus chama-se Yeshua ben Yosef (Yeshua filho de Yosef) e Lázaro é Eliezer ben
Natan. Para mim, isso era absolutamente necessário, não só para melhor reflectir
a realidade, pois todos eles eram judeus e Jesus era, de facto, um pregador, um
curandeiro e místico judaico, mas também
porque queria libertar o leitor actual das suas imagens e ideias feitas sobre
todas as personagens, incluindo o Sumo Sacerdote e os colonizadores romanos - e queria também libertar-me dos meus próprios
preconceitos! Por isso, não decidi nada sobre o enredo do livro ou sobre os
relacionamentos entre as diferentes personagens antes de fazer a necessária e
intensa pesquisa. Comecei a escrever sabendo, embora de forma ténue, o que ia
acontecer nos primeiros dois capítulos, mas não tinha qualquer ideia do resto
da narrativa. Gosto de trabalhar assim! Adoro descobrir o que o romance “quer
ser” e prefiro ser eu a seguir as minhas próprias personagens. Neste caso, ao
usar o nome Yeshua ben Yosef em vez de Jesus, senti-me completamente livre da
iconografia e da doutrina cristãs. Penso que o leitor vai descobrir esta mesma
liberdade ao ler o livro, vai poder examinar os actos e palavras de Yeshua de
um ponto de vista novo. O relacionamento entre Yeshua e Lázaro é, de facto, o aspecto
mais importante do livro, digo na narrativa que o amor e a cumplicidade entre
os dois é tão forte que é como se habitassem juntos uma ilha imaginária. Penso
que isso funciona como um poderoso símbolo da união entre ambos. Ao criar este
relacionamento entre os dois amigos, claro que insinuava também que todos nós
temos a possibilidade de desenvolver uma amizade profunda e duradoura.
Felizmente temos a capacidade de amar incondicionalmente!, porque a vida seria
muito mais dura sem isso. E deu-me muito prazer escrever sobre este aspecto tão
importante da vida, aliás, já tenho 62
anos e não quero desperdiçar o meu tempo explorando temas superficiais, quero
escrever sobre o que é verdadeiramente essencial – o significado de uma vida
individual, por exemplo, ou o sacrifício que um amigo poderá fazer por outro.
Penso que ao debruçarmo-nos sobre a relação de Lázaro com Yeshua, bem como, sobre as relações de Lázaro com
os seus filhos, o leitor vai ser
obrigado a pensar na sua própria vida, nos momentos de ternura, de revelação,
de sacrifício. Uma ideia muito presente na mente do Lázaro é a necessidade de
viver as suas amizades com intensidade e autenticidade, mas infelizmente ele
vive numa época e num lugar, onde isso lhe pode trazer enormes riscos. Há também
outro momento crucial no livro: é quando ele tem de escolher entre a sua
profunda devoção a Yeshua e a sua própria segurança, bem como a da sua família,
já que estou a falar de autenticidade, gostaria de citar uma das resenhas do livro
que saiu em Portugal. A autora escreveu: “E o trecho, quase no final do livro,
em que Lázaro vai descrevendo o Calvário, possui tal intensidade que o
sofrimento de Jesus é transmitido ao leitor com uma violência que espelha a dor
de Lázaro, o qual, em agonia, imagina que vai beijando e tocando em Jesus para
‘saber onde ele começa e termina, porque só conhecendo essas coisas
desaparecerão as fronteiras entre nós’”.
O Victor fala do corpo, eu penso que é um elemento que
sempre foco nos meus romances históricos, porque as personagens que os habitam
têm de ter experiências corporais marcantes para convencer o leitor de que são
pessoas reais. No caso de “O Evangelho Segundo Lázaro”, não só tentei devolver
às personagens o seu judaísmo, como também as suas sensações. Foi muito
importante “insuflar” as personagens com vida, torná-las tão sólidas e
complexas como nós, daí o destaque que dei aos sentidos na narrativa, sobretudo
o olfacto, porque são os cheiros, como nós sabemos, que estão mais intimamente
ligados às nossas memórias.
VOM - O romance de que estamos falando, apresenta-nos um narrador
(Lázaro) através de um escrito para o seu neto Yaphiel, nessa longa carta
Lázaro vai, não só descrevendo uma época, mas também narrando o que foi a sua
convivência com um dado amigo de infância chamado Jesus. Para Lázaro, Jesus não
é o filho unigénito de Deus, no entanto, ele tem certos poderes, tem uma
relação privilegiada com o sagrado. O Richard, enquanto autor do romance, crê
que Lázaro tem uma visão absolutamente precisa acerca de quem é, ou de quem não
é, esse seu amigo?
RZ - Sim, penso que Lázaro compreende Yeshua muito bem, embora,
como qualquer pessoa, a perspectiva dele seja muito influenciada pelas suas
emoções, neste caso pelo amor e respeito, ou seja, ele percebe muito bem que a
sua perspectiva não é objectiva, mas também não quer ter de manter qualquer
objectividade! Quem quereria manter-se a uma fria distância de um amigo num
momento crucial da vida, quando ele está a correr riscos terríveis e pode ser
preso?
Este romance obriga-nos a
fazer algumas perguntas: o que faríamos para um amigo amado que está a desafiar
pessoas com poder político e económico? Que sacrifícios faríamos para ajudá-lo
e protegê-lo?
Lázaro conhece
Yeshua desde a infância e decidiu muito jovem não ser um dos seus seguidores.
Optou por ser o seu refúgio. Os apóstolos, os doentes e os amigos exigem a
ajuda e o apoio de Yeshua, mas Lázaro decidiu não exigir nada, daí ter um papel
único na história. É um papel muito desafiador e, por vezes, doloroso, porque
não exigir nada de um amigo – não ter esse tipo de expectativas – é muito
difícil. Outro elemento importante é a confiança total
que Lázaro deposita em Yeshua: vemos isso logo no início do livro, quando
Lázaro acorda no seu túmulo sem qualquer memória de uma vida após a morte. Fica
muito perturbado e perde a sua crença, mas, curiosamente, não perde a sua fé no
amigo Yeshua! Acho que isso reflecte a nossa realidade, pois podemos perder a
nossa fé na religião ou nos tribunais ou no mundo da política, mas não perdemos
a fé nos nossos grandes amigos. O amor é mais resistente! Penso, de facto, que
é a coisa mais resistente na vida.
VOM – O modo cuidado como a intriga é tratada em “O Evangelho
segundo Lázaro” leva-nos, por vezes, a encontrar no seu romance momentos de
rara beleza e estou a lembrar-me dos encontros de Lázaro com uma das irmãs e
com Jesus. São momentos extremamente poéticos! Podemos ainda, neste mundo de
hoje tão dominado pelo ter e pela velocidade, manter relacionamentos desse
tipo?
RZ – Ainda bem que achou a narrativa poética, porque um dos meus
objectivos sempre foi o de usar as técnicas da poesia para dar mais força e
beleza ao texto. Uma metáfora bem escolhida, no momento certo, pode atingir-nos
de uma forma profunda e pode convencer o
leitor de que está a ser tratado pelo autor como um adulto inteligente e
sensível, como alguém capaz de apreciar todas as nuances da língua e todos os
sentimentos mais subtis. Sim, a nossa vida quotidiana é dominada pela
tecnologia e a velocidade e, nesse contexto, penso que a leitura pode
servir-nos de refúgio. Quem abre a capa de um bom romance — e entra por essa
porta — vai encontrar um silêncio habitado, um mundo paralelo! E quem não fugir
desse silêncio vai recolher benefícios, vai começar a sentir a profundidade da
sua própria vida, porque vai ser obrigado a examinar a sua maneira de pensar e
vai refletir sobre o seu passado e o seu presente, bem como sobre as suas
aspirações para o futuro.
VOM – O tema anterior fez-me lembrar o modo atento como todas as
variáveis são jogadas no seu romance, nomeadamente a questão social e
ideológica com aqueles famintos todos à porta de Lázaro à espera de uma bênção
ou a arrogância de Sallustius, o áugure de Pilatos. Houve uma intenção do autor
de mostrar, na teia narrativa, o papel dos diversos estratos sociais: os que
nada têm, os donos do poder, os fanáticos, etc.? Sentiu a necessidade de
mostrar todos esses intervenientes?
RZ - Sim, a minha intenção dominante era criar uma Terra Santa de
há dois mil anos, realista e fascinante, evocando não só as diferenças entre
essa sociedade e a nossa, mas também entre as diversas comunidades, de criar uma província remota do Império
Romano, uma Judeia onde o leitor encontrasse o bem e o mal, o sublime e o cruel,
a traição e o sacrifício, porque o mundo à nossa volta sempre incluiu tudo isso.
Precisava também de criar uma Terra Santa cheia de contrastes, porque Yeshua,
como curandeiro e pregador conhecido, teria lidado com todos os estratos
sociais desde os leprosos aos sacerdotes.
O áugure de Pilatos,
Sallustius, deu-me uma oportunidade de explorar um tema que me interessa muito:
a crença das pessoas do passado em todo o tipo de presságios. Os romanos,
gregos, judeus, fenícios e outros povos da Terra Santa partilhavam essa maneira
simbólica de pensar. Nessa época, tudo à sua volta — uma tempestade, o voo de
um pássaro, uma doença de um familiar — era interpretado simbolicamente, tudo o
que acontecia estava repleto de significado. No caso de Pilatos, temos
documentação incontestável que indica que os oficiais romanos não tomavam
qualquer decisão importante sem consultar o seu áugure ou arúspice, por isso,
Sallustius terá tido uma influência sobre os destinos de Yeshua e Lázaro. Ao
longo de toda a narrativa do livro, exploro o pensamento simbólico e examino
como é que teria influenciado os actos das personagens. Na minha perspectiva, é
um aspecto do livro particularmente misterioso e empolgante.
VOM – Por fim, e isto é mais um desabafo do que uma pergunta: o
Richard Zimler é hoje um nome grande do romance português, não lhe parece que a
difusão da sua obra, bem como a de outros autores portugueses, romancistas e
poetas, não tem a difusão no Brasil que deveria ter, aliás, o mesmo sucedendo
com imensos autores brasileiros completamente desconhecidos em Portugal? Não
será que as Revistas de Cultura, no presente caso a “Revista Pessoa”, têm vindo
a desemprenhar um papel importante?
RZ - Concordo consigo e acho muito estranho e triste que não haja
um maior conhecimento da literatura brasileira em Portugal e da literatura
portuguesa no Brasil. Não compreendo a falta de interesse, talvez porque sou
americano e nos Estados Unidos lemos muita literatura inglesa, irlandesa e
indiana, aliás, consideramos os grandes romancistas britânicos, como Jane
Austen ou Charles Dickens, uma parte da nossa herança também e muitos
escritores americanos modernos têm um enorme influência na Grã-Bretanha: Philip
Roth e Saul Bellow, por exemplo. Neste contexto, quero contar uma breve
história: quando saiu no Brasil o meu romance “A Sétima Porta”, a minha editora
na altura pediu-me citações da imprensa que pudesse usar na capa ou contracapa
da edição brasileira. Respondi: “óptimo, porque tenho citações espectaculares
dos jornais e revistas portugueses!” E a minha editora, numa voz particularmente
áspera, disse: “não queremos citações de Portugal, queremos dos Estados Unidos
ou da Inglaterra”! Aquela resposta deixou-me muito perplexo, claro. Já estive no
Brasil várias vezes para promover livros e, embora não o conheça bem, penso que
muitos brasileiros dão grande destaque à cultura americana e respeitam tudo o
que sai nos Estados Unidos, ao passo que menosprezam os produtos culturais de
Portugal. Em Portugal, a situação não é muito diferente, mas é ainda mais
curiosa, porque a música brasileira é muito apreciada, mas não a literatura. Parece-me
isso lamentável, em parte porque os escritores contemporâneos brasileiros
utilizam a língua portuguesa muito criativamente, inventam palavras novas e
jogam com expressões antigas, dando-lhes nova vida. A minha teoria é que sentem mais liberdade do
que os escritores portugueses, mais livres das regras tradicionais. É
maravilhoso!
Como o Victor diz, penso que
as revistas culturais, como a “Revista Pessoa” podem desempenhar um papel
decisivo neste contexto, porque podem divulgar obras desconhecidas e muito
valiosas. Temos de criar um público que não esteja tão interessado na origem
geográfica do autor, mas muito mais na sua qualidade.
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© Copyright de
Richard Zimler
© Copyright de
Victor Oliveira Mateus
© Copyright de
Revista Pessoa
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Ver aqui: https://www.revistapessoa.com/artigo/2561/o-bem-e-o-mal-o-sublime-e-o-cruel-a-traicao-e-o-sacrificio-no-novo-romance-de-richard-zimler
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