terça-feira, 22 de maio de 2018


     Os teus retratos


Fecho os olhos e descubro.

Há um secreto odor de lobo por todo o lado
onde o amor cresceu contra a espessura
de um destino.
Há um idioma repulsivo como uma manta de retalhos
uma mágoa navegável, uma máquina de culpa.
Há uma voz do avesso e uma música
irrefreável que pulsa.

O dia é trânsito absoluto. Oração sem luz.
A pobreza extrema de uma fábula.

Agora sei: o estranho costume de sofrer por ti
deixou-me puro. A dor, entretanto, foi perdendo
o pormenor. O mundo elidiu o alívio.
A casa tornou-se parte do pó.

Já não há história, mas uma máscara
que flutua sobre a fama dos despojos.
Já não há pureza na página,
no tempo, na conjugação.

Chegarei a ti com a convicção lenta dos crepúsculos
suportando uma moldura de instantes desarmados.
Chegarei sem saber como saciar a minha chegada.

Chegarei a ti inútil como a morte.
Com a calma delirante de um fracasso.
Sem fogo nem perguntas: nos lábios
apenas o grito branco de uma praia.

E tu dirás o quanto o silêncio te pesa
entre as rosas e as falsificações.
E no meio das tuas mortes predilectas
eu vou outra vez erguer a voz.
E só então a noite suspenderá
os teus retratos.


 Domingues, André. Tempestade das Mãos. Coimbra: Debout Sur L'Oeuf, 2017, pp 25-26.
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