sexta-feira, 18 de maio de 2018


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Richard Zimler é um escritor norte americano naturalizado português, nascido em Roslyn Heights, Nova Iorque. Formado em Religião Comparativa pela Universidade de Duke (1977) e mestre em Jornalismo pela Universidade de Stanford (1982), Zimler radicar-se-ia em Portugal em 1990 - tendo depois obtido a nacionalidade portuguesa em 2002 -, país onde tem desenvolvido uma atividade plurifacetada: docente na Universidade do Porto, argumentista para cinema, literatura infantil, etc., mas é sobretudo como romancista que o seu nome tem vindo a alcançar uma incontestável projeção. Da sua obra literária, sobejamente premiada, ressaltam títulos como: “O Último Cabalista de Lisboa” (1996), “Goa ou o Guardião da Aurora” (2005), “Os Anagramas de Varsóvia” (2009), “O Evangelho Segundo Lázaro” (2016). O seu último romance, agora publicado no Brasil, deu azo à conversa que se apresenta aqui entre o poeta Victor Oliveira Mateus e o romancista Richard Zimler.

VOM – Os seus romances colocam em lugar de destaque a relação do homem com a Cultura, bem como a História, contudo, esta última não se restringe a uma função puramente descritiva, nos seus romances. Pensa que falar do Passado, ou dar dele uma interpretação própria, é importante para compreender o Presente e, em certa medida, projetar uma certa visão do Futuro?

RZ – Adoro escrever sobre o passado, em parte porque é um desafio enorme perceber a maneira de pensar de pessoas que viveram há duzentos anos ou mil anos e transmitir essa compreensão numa narrativa emotiva e inteligente. No caso do meu primeiro romance, “O Último Cabalista de Lisboa”, tive de entrar na pele de Berequiais Zarco, um jovem judeu que vivia em Lisboa no princípio do Século XVI. Ao fazer a pesquisa para o livro – durante um ano inteiro – descobri que Berequias e os seus familiares nem sempre teriam partilhado a nossa perspetiva sobre as questões mais importantes da vida: por exemplo, o que acontece depois da morte, ou qual a relação entre sexo e amor, ou ainda qual a função da religião numa dada sociedade. Gostei muito da experiência de contar uma história do ponto de vista de alguém muito diferente de mim e achei fascinante tentar conta-la fiel aos valores e crenças de uma outra época, e, ao mesmo tempo, fazer despertar emoções fortes no leitor actual – conseguir criar uma relação afectiva e complexa entre um residente de São Paulo, por exemplo, e um jovem lisboeta que teria morrido há quinhentos anos. Aprecio muito quando me cruzo com um desconhecido numa rua de Lisboa ou do Porto e ele me agradece ter escrito um romance e diz ter adorado dado narrador e dadas outras personagens, porque a magia profunda de um romance reside na sua capacidade de estabelecer uma empatia entre o leitor e uma personagem e através dessa relação fazer com que alguém examine o seu passado e o presente numa perspetiva diferente. Penso que um autor com talento consegue fazer isso, porque as emoções são universais e quase intemporais. Digo quase, porque ao fazer a pesquisa para “O Evangelho Segundo Lázaro” descobri, por exemplo, que a honra era, há 2000 anos, um sentimento ou valor crucial e hoje em dia, no Ocidente, praticamente esse valor desapareceu. Mesmo assim, temos amplas provas da existência de sentimentos como o amor, a paixão, o ciúme, o ódio e grande parte de outras emoções no “Velho Testamento” e em livros muito antigos como o “Asno de Ouro”, do autor romano Lucius Apuleius. E temos provas também de que as consequências destas emoções – desde a amizade à traição e à crueldade – eram tão comuns no tempo do Império Romano como hoje em dia, basta pensar no assassinato de Júlio César e na própria crucificação de Jesus. Por isso, um bom romance histórico pode obrigar o leitor a pensar em assuntos muito actuais. No meu novo romance, as personagens debruçam-se sobre a repressão da mulher, e sobre a discriminação de pessoas com diferentes crenças. Daí a ligação com o futuro a que o Victor se refere, porque, no caso de vários livros meus, o narrador deseja um mundo mais justo e luta para atingir esse objectivo. Em “O Evangelho Segundo Lázaro” existe um desejo enorme por parte deste e de Jesus de renovar o mundo, de obrigar os Romanos a deporem as armas, de criar uma sociedade baseada na compaixão e não na dominação. Isso é muito claro no “Novo Testamento”, nos Evangelhos Gnósticos e é ainda hoje o desejo de muita gente. Quando é que iremos conseguir um mundo igualitário baseado na solidariedade? Quantos milhões de pessoas mais terão de morrer para vivermos todos livres de perseguições?

VOM – Em “O Evangelho Segundo Lázaro”, romance agora publicado no Brasil, as personagens são cuidadosamente caraterizadas, e estou a lembrar-me de Anás, o antigo Sumo Sacerdote, das irmãs de Lázaro, do relacionamento de Lázaro com Jesus. Poderemos dizer que a sua obra romanesca tem também por função, entre muitas outras, esmiuçar valores e comportamentos do mundo contemporâneo, no caso agora referido o fanatismo e a relação com o corpo?

RZ – Um dos propósitos do meu romance era devolver a Jesus e às outras personagens o seu judaísmo. Daí o uso dos nomes hebraicos no livro. Jesus chama-se Yeshua ben Yosef (Yeshua filho de Yosef) e Lázaro é Eliezer ben Natan. Para mim, isso era absolutamente necessário, não só para melhor reflectir a realidade, pois todos eles eram judeus e Jesus era, de facto, um pregador, um curandeiro e místico judaico,  mas também porque queria libertar o leitor actual das suas imagens e ideias feitas sobre todas as personagens, incluindo o Sumo Sacerdote e os colonizadores romanos -  e queria também libertar-me dos meus próprios preconceitos! Por isso, não decidi nada sobre o enredo do livro ou sobre os relacionamentos entre as diferentes personagens antes de fazer a necessária e intensa pesquisa. Comecei a escrever sabendo, embora de forma ténue, o que ia acontecer nos primeiros dois capítulos, mas não tinha qualquer ideia do resto da narrativa. Gosto de trabalhar assim! Adoro descobrir o que o romance “quer ser” e prefiro ser eu a seguir as minhas próprias personagens. Neste caso, ao usar o nome Yeshua ben Yosef em vez de Jesus, senti-me completamente livre da iconografia e da doutrina cristãs. Penso que o leitor vai descobrir esta mesma liberdade ao ler o livro, vai poder examinar os actos e palavras de Yeshua de um ponto de vista novo. O relacionamento entre Yeshua e Lázaro é, de facto, o aspecto mais importante do livro, digo na narrativa que o amor e a cumplicidade entre os dois é tão forte que é como se habitassem juntos uma ilha imaginária. Penso que isso funciona como um poderoso símbolo da união entre ambos. Ao criar este relacionamento entre os dois amigos, claro que insinuava também que todos nós temos a possibilidade de desenvolver uma amizade profunda e duradoura. Felizmente temos a capacidade de amar incondicionalmente!, porque a vida seria muito mais dura sem isso. E deu-me muito prazer escrever sobre este aspecto tão importante da vida,  aliás, já tenho 62 anos e não quero desperdiçar o meu tempo explorando temas superficiais, quero escrever sobre o que é verdadeiramente essencial – o significado de uma vida individual, por exemplo, ou o sacrifício que um amigo poderá fazer por outro. Penso que ao debruçarmo-nos sobre a relação de Lázaro com  Yeshua, bem como, sobre as relações de Lázaro com os seus filhos,  o leitor vai ser obrigado a pensar na sua própria vida, nos momentos de ternura, de revelação, de sacrifício. Uma ideia muito presente na mente do Lázaro é a necessidade de viver as suas amizades com intensidade e autenticidade, mas infelizmente ele vive numa época e num lugar, onde isso  lhe pode trazer enormes riscos. Há também outro momento crucial no livro: é quando ele tem de escolher entre a sua profunda devoção a Yeshua e a sua própria segurança, bem como a da sua família, já que estou a falar de autenticidade, gostaria de citar uma das resenhas do livro que saiu em Portugal. A autora escreveu: “E o trecho, quase no final do livro, em que Lázaro vai descrevendo o Calvário, possui tal intensidade que o sofrimento de Jesus é transmitido ao leitor com uma violência que espelha a dor de Lázaro, o qual, em agonia, imagina que vai beijando e tocando em Jesus para ‘saber onde ele começa e termina, porque só conhecendo essas coisas desaparecerão as fronteiras entre nós’”.
O Victor  fala do corpo, eu penso que é um elemento que sempre foco nos meus romances históricos, porque as personagens que os habitam têm de ter experiências corporais marcantes para convencer o leitor de que são pessoas reais. No caso de “O Evangelho Segundo Lázaro”, não só tentei devolver às personagens o seu judaísmo, como também as suas sensações. Foi muito importante “insuflar” as personagens com vida, torná-las tão sólidas e complexas como nós, daí o destaque que dei aos sentidos na narrativa, sobretudo o olfacto, porque são os cheiros, como nós sabemos, que estão mais intimamente ligados às nossas memórias.

VOM - O romance de que estamos falando, apresenta-nos um narrador (Lázaro) através de um escrito para o seu neto Yaphiel, nessa longa carta Lázaro vai, não só descrevendo uma época, mas também narrando o que foi a sua convivência com um dado amigo de infância chamado Jesus. Para Lázaro, Jesus não é o filho unigénito de Deus, no entanto, ele tem certos poderes, tem uma relação privilegiada com o sagrado. O Richard, enquanto autor do romance, crê que Lázaro tem uma visão absolutamente precisa acerca de quem é, ou de quem não é, esse seu amigo?

RZ - Sim, penso que Lázaro compreende Yeshua muito bem, embora, como qualquer pessoa, a perspectiva dele seja muito influenciada pelas suas emoções, neste caso pelo amor e respeito, ou seja, ele percebe muito bem que a sua perspectiva não é objectiva, mas também não quer ter de manter qualquer objectividade! Quem quereria manter-se a uma fria distância de um amigo num momento crucial da vida, quando ele está a correr riscos terríveis e pode ser preso?
Este romance obriga-nos a fazer algumas perguntas: o que faríamos para um amigo amado que está a desafiar pessoas com poder político e económico? Que sacrifícios faríamos para ajudá-lo e protegê-lo?
Lázaro conhece Yeshua desde a infância e decidiu muito jovem não ser um dos seus seguidores. Optou por ser o seu refúgio. Os apóstolos, os doentes e os amigos exigem a ajuda e o apoio de Yeshua, mas Lázaro decidiu não exigir nada, daí ter um papel único na história. É um papel muito desafiador e, por vezes, doloroso, porque não exigir nada de um amigo – não ter esse tipo de expectativas – é muito difícil. Outro elemento importante é a confiança total que Lázaro deposita em Yeshua: vemos isso logo no início do livro, quando Lázaro acorda no seu túmulo sem qualquer memória de uma vida após a morte. Fica muito perturbado e perde a sua crença, mas, curiosamente, não perde a sua fé no amigo Yeshua! Acho que isso reflecte a nossa realidade, pois podemos perder a nossa fé na religião ou nos tribunais ou no mundo da política, mas não perdemos a fé nos nossos grandes amigos. O amor é mais resistente! Penso, de facto, que é a coisa mais resistente na vida.

VOM – O modo cuidado como a intriga é tratada em “O Evangelho segundo Lázaro” leva-nos, por vezes, a encontrar no seu romance momentos de rara beleza e estou a lembrar-me dos encontros de Lázaro com uma das irmãs e com Jesus. São momentos extremamente poéticos! Podemos ainda, neste mundo de hoje tão dominado pelo ter e pela velocidade, manter relacionamentos desse tipo?

RZ – Ainda bem que achou a narrativa poética, porque um dos meus objectivos sempre foi o de usar as técnicas da poesia para dar mais força e beleza ao texto. Uma metáfora bem escolhida, no momento certo, pode atingir-nos de uma forma profunda  e pode convencer o leitor de que está a ser tratado pelo autor como um adulto inteligente e sensível, como alguém capaz de apreciar todas as nuances da língua e todos os sentimentos mais subtis. Sim, a nossa vida quotidiana é dominada pela tecnologia e a velocidade e, nesse contexto, penso que a leitura pode servir-nos de refúgio. Quem abre a capa de um bom romance — e entra por essa porta — vai encontrar um silêncio habitado, um mundo paralelo! E quem não fugir desse silêncio vai recolher benefícios, vai começar a sentir a profundidade da sua própria vida, porque vai ser obrigado a examinar a sua maneira de pensar e vai refletir sobre o seu passado e o seu presente, bem como sobre as suas aspirações para o futuro.

VOM – O tema anterior fez-me lembrar o modo atento como todas as variáveis são jogadas no seu romance, nomeadamente a questão social e ideológica com aqueles famintos todos à porta de Lázaro à espera de uma bênção ou a arrogância de Sallustius, o áugure de Pilatos. Houve uma intenção do autor de mostrar, na teia narrativa, o papel dos diversos estratos sociais: os que nada têm, os donos do poder, os fanáticos, etc.? Sentiu a necessidade de mostrar todos esses intervenientes?

RZ - Sim, a minha intenção dominante era criar uma Terra Santa de há dois mil anos, realista e fascinante, evocando não só as diferenças entre essa sociedade e a nossa, mas também entre as diversas comunidades,  de criar uma província remota do Império Romano, uma Judeia onde o leitor encontrasse o bem e o mal, o sublime e o cruel, a traição e o sacrifício, porque o mundo à nossa volta sempre incluiu tudo isso. Precisava também de criar uma Terra Santa cheia de contrastes, porque Yeshua, como curandeiro e pregador conhecido, teria lidado com todos os estratos sociais desde os leprosos aos sacerdotes.
O áugure de Pilatos, Sallustius, deu-me uma oportunidade de explorar um tema que me interessa muito: a crença das pessoas do passado em todo o tipo de presságios. Os romanos, gregos, judeus, fenícios e outros povos da Terra Santa partilhavam essa maneira simbólica de pensar. Nessa época, tudo à sua volta — uma tempestade, o voo de um pássaro, uma doença de um familiar — era interpretado simbolicamente, tudo o que acontecia estava repleto de significado. No caso de Pilatos, temos documentação incontestável que indica que os oficiais romanos não tomavam qualquer decisão importante sem consultar o seu áugure ou arúspice, por isso, Sallustius terá tido uma influência sobre os destinos de Yeshua e Lázaro. Ao longo de toda a narrativa do livro, exploro o pensamento simbólico e examino como é que teria influenciado os actos das personagens. Na minha perspectiva, é um aspecto do livro particularmente misterioso e empolgante.

VOM – Por fim, e isto é mais um desabafo do que uma pergunta: o Richard Zimler é hoje um nome grande do romance português, não lhe parece que a difusão da sua obra, bem como a de outros autores portugueses, romancistas e poetas, não tem a difusão no Brasil que deveria ter, aliás, o mesmo sucedendo com imensos autores brasileiros completamente desconhecidos em Portugal? Não será que as Revistas de Cultura, no presente caso a “Revista Pessoa”, têm vindo a desemprenhar um papel importante?

RZ - Concordo consigo e acho muito estranho e triste que não haja um maior conhecimento da literatura brasileira em Portugal e da literatura portuguesa no Brasil. Não compreendo a falta de interesse, talvez porque sou americano e nos Estados Unidos lemos muita literatura inglesa, irlandesa e indiana, aliás, consideramos os grandes romancistas britânicos, como Jane Austen ou Charles Dickens, uma parte da nossa herança também e muitos escritores americanos modernos têm um enorme influência na Grã-Bretanha: Philip Roth e Saul Bellow, por exemplo. Neste contexto, quero contar uma breve história: quando saiu no Brasil o meu romance “A Sétima Porta”, a minha editora na altura pediu-me citações da imprensa que pudesse usar na capa ou contracapa da edição brasileira. Respondi: “óptimo, porque tenho citações espectaculares dos jornais e revistas portugueses!” E a minha editora, numa voz particularmente áspera, disse: “não queremos citações de Portugal, queremos dos Estados Unidos ou da Inglaterra”! Aquela resposta deixou-me muito perplexo, claro. Já estive no Brasil várias vezes para promover livros e, embora não o conheça bem, penso que muitos brasileiros dão grande destaque à cultura americana e respeitam tudo o que sai nos Estados Unidos, ao passo que menosprezam os produtos culturais de Portugal. Em Portugal, a situação não é muito diferente, mas é ainda mais curiosa, porque a música brasileira é muito apreciada, mas não a literatura. Parece-me isso lamentável, em parte porque os escritores contemporâneos brasileiros utilizam a língua portuguesa muito criativamente, inventam palavras novas e jogam com expressões antigas, dando-lhes nova vida.  A minha teoria é que sentem mais liberdade do que os escritores portugueses, mais livres das regras tradicionais. É maravilhoso!
Como o Victor diz, penso que as revistas culturais, como a “Revista Pessoa” podem desempenhar um papel decisivo neste contexto, porque podem divulgar obras desconhecidas e muito valiosas. Temos de criar um público que não esteja tão interessado na origem geográfica do autor, mas muito mais na sua qualidade.
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© Copyright de Victor Oliveira Mateus
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Ver aqui:  https://www.revistapessoa.com/artigo/2561/o-bem-e-o-mal-o-sublime-e-o-cruel-a-traicao-e-o-sacrificio-no-novo-romance-de-richard-zimler   
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