sábado, 21 de março de 2015

Texto de apresentação da Antologia "Cintilações da Sombra 3" (Lisboa, 2015/3/21)


Quando a poesia se contempla, nua, ao espelho:

Novos rumos da literatura

 

João de Mancelos

(Universidade da Beira Interior)

 

O escritor modernista norte-americano Wallace Stevens comparava, com perspicácia, o poeta a uma gralha. Como essa ave constrói, paulatinamente, o ninho graças aos materiais que esgravata, também um homem ou mulher de letras elabora o seu texto a partir de ideias, imagens e versos alheios, apropriando-os com criatividade. Quanto melhor é o poeta, mais seu é aquilo que furta.

O trabalho de um antologiador não é diferente deste: recolhe, seleciona e colige determinadas composições, esperando que o seu esforço revele o “status quo” da poesia hodierna, na sua vital multiplicidade. Neste contexto, a tarefa de que Victor Oliveira Mateus se tem ocupado, na série de livros Cintilações da Sombra, não é singela. A era do pós-modernismo carateriza-se pela emergência de estéticas individuais, e não tanto por correntes bem definidas. A poesia, mais até do que o romance, dinamiza-se num caleidoscópio de temas, conteúdos e estilos. Por sua vez, estes multiplicam-se e fragmentam-se, quando os autores se arriscam no campo do experimentalismo.

Perante esta realidade tão heterogénea, é legítimo colocar uma mão cheia de perguntas, talvez esfíngicas. Será possível um antologiador revelar capazmente uma tal diversidade de vozes poéticas? A que critérios recorrer na seleção dos textos mais representativos? Como usar um paradigma estético, quando a própria produção literária evolui mais pressurosamente do que a crítica? No início deste século, poderá a poesia contemplar-se, nua, ao espelho — e reconhecer-se?

Argumento que esta antologia, Cintilações da Sombra 3, constitui uma mostra representativa e internacional da poética contemporânea e, assim, responde às perguntas que referi. As caraterísticas que a generalidade dos textos aqui reunidos apresentam são o recurso à imagética poderosa, que causa o aristotélico sentimento de estranheza e fomenta o deleite estético; a musicalidade, por vezes deliberadamente fragmentária ou jazzística, se preferirem; e um premente desejo de libertação dos espartilhos formais.

Surpreendentemente, estes três constituintes partilhados revelam que o caudal da diversidade encontrou um leito comum, por onde fluir. Mais ainda, evidenciam que alguns anseios dos poetas e certas opções no plano estético não cambiaram significativamente com o rodar da máquina do tempo. Residirá nesses três pilares (imagem, música e novidade) a essência imemorial da poesia? Na minha leitura, os textos selecionados por Victor Oliveira Mateus testemunham precisamente isso.

Passemos à primeira trave-mestra desta obra, o sábio uso da imagem, um dos principais tropos, dentro dos recursos estilísticos. Os pintores renascentistas, quando desejavam salientar o erotismo de um corpo nu, cobriam-no parcialmente com uma veste, manto ou lençol. Esta estratégia, talvez paradoxal, não difere da usada pelos poetas: para revelar é preciso esconder; para ocultar é imprescindível sugerir; para insinuar é fundamental não ser evidente. Aqui reside um dos desafios primordiais de qualquer poeta: ser plurissignificativo, para que o corpo da poesia se ofereça, sempre fértil, a qualquer leitor. Mais dinâmica do que as comparações ou metáforas, a imagem ambiciona dizer o inefável, como este público de poetas bem sabe.

Em minha opinião, um dos textos que melhor ilustra esta capacidade é “Monólogos do Báltico V”, de Alberto Pereira, de que reproduzo um excerto: “Não me digam para guardar / o vento na garganta / ou que as tempestades / são retratos de um hospício. / O teu corpo ensinou-me, / o Verão é um felino / e a hierarquia das garras / só o tempo a sabe” (9). Outro belíssimo exemplo reside no poema “Os sulcos dos dias”, de Artur Ferreira Coimbra, que afirma: “As rugas desaguam nos rios / Que serpenteiam as tardes demoradas da vida / Depois de imensos outonos folhas pedras cristais / Luas de luas madrugadas sem final / Como pérolas que desabrocham em êxtase / Para recolher o mar cansado nas ondas do teu olhar / Indiferente aos barcos e à urgência intemporal das gaivotas” (17). Poderia ainda referir esta expressiva e original estrofe, da “Elegia a Natália Correia”, por Daniel Gonçalves: “era a dimensão encontrada uma torneira fechando a loucura / a paixão intacta como um vestido a quem avariaram as asas / e se despenhou no fundo do armário junto do botão perdido” (26).

Um segundo aspeto que me suscitou a atenção foi a musicalidade de alguns textos incorporados nesta antologia, sobretudo os de natureza mais lírica, termo que remete desde logo para o instrumento que acompanhava a leitura ou canto da poesia na antiguidade clássica. Destacaria, pelas suas qualidades fónico-rítmicas, “Dos mortos, cativos somos”, de Albano Martins, que recorre à anástrofe, ao encavalgamento e aos versos breves de onde ressuma a melodia. Transcrevo-o na íntegra: Partem / às vezes sem um aviso / sequer, como se / a sua ausência fosse / apenas temporária. Regressam / sempre ao lugar / donde partiram. Ou / somos nós que partimos / ao seu encontro, já / transformados em estátuas / de pirilampos” (8). A mesma melodia depurada encontra-se em poemas de recorte clássico, como “Amar-te” (19), de Casimiro de Brito, um dos meus poetas favoritos de sempre, ou “Caminhada” (21), de Cláudio Lima, apenas para citar dois dos abundantes exemplos que o leitor indubitavelmente desvendará.

Por fim, gostaria de realçar a relevância que o experimentalismo detém, como agente de revitalização da arte poética. Alguns autores, ao descobrirem a sua voz, aqui entendida como o estilo singular e temas dominantes, prosseguem um determinado rumo, despojado de surpresas. A poesia de Sophia Andresen ou de Eugénio de Andrade é monótona, no sentido eufórico do termo, ou seja, coesa. Este perfil permite ao leitor descobrir, por exemplo, o sentido dos termos mais recorrentes do seu estilo. Porque cada texto ilumina e esclarece os restantes, a compreensão da mensagem volve-se percetível, sem perder o véu lírico.

No entanto, favoreço os poetas que, num golpe de asa, mudam de rumo, por vezes sob a máscara heteronímica, e se atrevem à novidade, sem receio. Como afirmou Robert Graves, o experimentalismo significa dúvida, esperança e incerteza. Por outro lado, segundo argumenta António Ramos Rosa, num dos seus poemas, representa também a abertura de janelas, para deixar sair o ar viciado.

Existem diversas composições, nesta antologia, que reescrevem ou subvertem, com imaginação, temas imemoriais. Penso, por exemplo, no poema antirromântico “La vida segun Bacon”, de Antonio Praena Segura, que recorre ao calão e a uma linguagem vernácula para, citando um Francis Bacon embriagado, clamar: “el amor es ser bueno. Pero estaba borracho” (15). Outras composições aproximam a poesia à prosa, como sucede no texto “Corpo com vista para um declive” (53-54), de Maria José Quintela, “Correr até que o gato fale como um homem” (67), de Samuel Pimenta, ou “El Penúltimo Enojo de Leopoldo María Panero” (37), de Jorge Melícias, uma elegia irreverente quanto baste. Não se trata de prosa poética, expressão que Eugénio de Andrade abominava, e por bons motivos, mas sim de poemas em prosa, textos que se despiram das convenções, até na mancha tipográfica.

Em minha opinião, o poema mais arrojado desta antologia, na linguagem e ritmo fragmentário, pertence a Danilo Bueno. Um excerto: A ___ /quer / Mais que a ___ / A ___ fecha / Crianças num bunker / Ainda mais treva / (Odeia a alteridade) / Mera perspetiva de lucro / Nenhuma estética nenhuma / Boca no mamilo / Pode com ela” (27).

Ler este terceiro volume de Cintilações da Sombra constitui um prazer, porque toma o pulso à poesia de hoje, revelando a sua múltipla divícia, e afastando qualquer suspeita de esgotamento. Outrossim porque, pela abrangência de autores de vários países, constitui um desafio de literatura comparada para o leitor, e uma fonte de debate para o criador de poesia. Os três breves ensaios exegéticos que o acompanham, de Érico Nogueira, Miguel Real e Victor Oliveira Mateus, evidenciam este desejo de colocar a poesia em frente o espelho, refletindo-a e pensando-a.

E o que contempla a musa? Existem dois polos, na presente coletânea: por um lado, uma poesia mais tradicional, cultivando a depuração, um uso rigoroso de vocábulos pertencentes à esfera semântica do poético, e ecoando o rumor de vozes antigas; por outro, composições que alargam o escopo da literatura, sem perder o seu âmago, desafiando o expectável, na linguagem, nos temas e até na própria mancha tipográfica. Os primeiros transmitem conforto ao leitor, entretecendo-se num cânone sólido e antigo, que reificam e representam talentosamente. Sobre os segundos, repousa a responsabilidade de renovar, rasgar, subverter, antevendo, enfim, o amanhã da poesia. Neste contexto, não nos podemos esquecer de que os grandes poetas foram também profetas, como Hart Crane, Walt Whitman, Fernando Pessoa, Ezra Pound, entre outros nomes maiores do cânone ocidental.

Argumentavam os antigos gregos, com alguma justiça, que um extenso poema constitui uma longa maçada. O mesmo talvez se aplique a todos os textos críticos ou de apresentação, como o meu, quando ameaçam transpor as três ou quatro páginas tradicionais. Não desejando abusar da paciência dos ouvintes, nem reclamar o tempo dos poetas, mais precioso do que o dos críticos, terminaria apenas com um voto de esperança. Num dos textos desta coletânea, José Jorge Letria afirma que, no tempo em que vivemos, a poesia se cala e omite, quase pedindo desculpa por aludir ao amor. Perante a realidade atual, só desejo que estes versos cintilem, palavra a palavra, rumo ao futuro que sobressaltamos.
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quinta-feira, 19 de março de 2015



A CINTILAÇÕES DA SOMBRA 3 será apresentada ao público no próximo dia 21, DIA MUNDIAL DA POESIA, pelas 16:00, no Espaço SABER SABOR 6 ARTES, Rua da Junqueira, 438 - Lisboa. Este evento terá na mesa: o Prof. João de Mancelos, que apresentará a obra; Gisela Ramos Rosa, que dirá alguns dos textos apresentados; Victor Oliveira Mateus, coordenador da Antologia e o poeta Daniel Gonçalves, responsável pelo Design e Grafismo. O Nº 3 da Cintilações conta com a presença de escritores de Portugal, Brasil, Espanha, Argentina e Grécia.
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segunda-feira, 16 de março de 2015



  "Pássaro em queda num lugar sagrado"




Naqueles dias
vimos o pássaro em queda
num lugar sagrado
Voou com asas todas brancas
e uma cauda como leque de sol
Vimos o remoto relâmpago
o susto do baque
nos vidros mais comuns
a morte, ilusão de transparências
Abandonou outras imagens
idênticas asas perdidas
a glória fulminada
o risco do sangue


E vimos a inspiração do quadro
os homens e as mulheres
num canto do mundo
respirando a luz
como se fosse o silêncio inteiro
Contemplavam depois a própria cegueira
prisioneiros de um pó dourado
com os pés enleados em raízes
do mesmo vermelho vivo


Ficava ao largo
o sacro pescador
absorto na troca das marés
um sifão turvo de peixes
espelhos de espelhos
Prende nas suas redes
o ar da tempestade
lança-as sobre o vazio
o mais submerso mar




   Silva, José Manuel Teixeira da. Música de Anónimo. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2015, pp 35 - 36.
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domingo, 15 de março de 2015

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Porque _ Me fecham o Paraíso?
Cantei _ alto de mais?
Mas _ sei falar num leve tom "Menor"
Tímida como Pássaro!

Não me querem os Anjos pôr à prova _
Somente _ uma vez _ mais _
A _ ver _ se eu os iria perturbar _
Mas não _ fechem a porta!

Oh, fosse _ eu _ o Cavalheiro
O da "Túnica Branca" _
E eles _ a Mão _ que leve ali batia _
Será que _ eu _ proibia?


  Dickinson, Emily. Duzentos Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2014, p 411 (Tradução: Ana Luísa Amaral).
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Eis a minha carta ao Mundo,
Que nunca Me escreveu _
Notícias simples que, terna e Nobre _
Contou a Natureza


Foi dada a sua Mensagem
A Mãos que eu não posso ver _
Gentis _ patrícios _ por Seu Amor _
Dai-Me terna sentença


 
   Dickinson, Emily. Duzentos Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2014, p 363 (Tradução: Ana Luísa Amaral).
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quinta-feira, 12 de março de 2015



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(promo trailer )

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Dia 21 de Março (sábado), Dia Mundial da Poesia, pelas 16:00, será apresentada ao público - no espaço "Saber Sabor & Artes (Rua da Junqueira, nº 438 - Lisboa) - a obra "Cintilações da Sombra 3", Antologia coordenada por Victor Oliveira Mateus.  Para além do coordenador, este evento contará com a presença do poeta e ensaísta João de Mancelos, que fará a apresentação do referido livro, e de Gisela Ramos Rosa que lerá alguns dos textos antologiados.
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Os autores integrados no 3º Volume da "Cintilações são:
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POESIA
Adolfo Cueto ( Espanha)
Albano Martins (Portugal)
Alberto Pereira (Portugal)
Alfredo Pérez Alencart (Espanha)
Ana Maria Puga (Portugal)
Antonio Brasileiro (Brasil)
Antonio Cubelos Marqués (Espanha)
António Ferra (Portugal)
Antonio Praena Segura (Espanha)
Artur Ferreira Coimbra (Portugal)
Aurelino Costa (Portugal)
Casimiro de Brito (Portugal)
Cecília Barreira (Portugal)
Cláudio Lima (Portugal)
Cláudio Neves (Brasil)
Cristina Carvalho (Portugal)
Daniel Gonçalves (Portugal)
Danilo Bueno (Brasil)
Ernesto Rodrigues (Portugal)
Gabriela Rocha Martins (Portugal)
Gisela Ramos Rosa (Portugal)
Henrique Levy (Portugal)
Hugo Milhanas Machado (Portugal)
Inez Andrade Paes (Portugal)
Isabel Aguiar (Portugal)
Ivone Mendes da Silva (Portugal)
Joel Henriques (Portugal)
Jorge Melícias (Portugal)
José Cereijo (Espanha)
José do Carmo Francisco (Portugal)
José Félix Duque (Portugal)
José Jorge Letria (Portugal)
Leo Barbosa (Brasil)
Leonardo Chioda (Brasil)
Licínia Quitério (Portugal)
Lina Tâmega Peixoto (Brasil)
Luís Filipe Pereira (Portugal)
Marco Lucchesi (Brasil)
Maria Augusta Silva (Portugal)
Maria Estela Guedes (Portugal)
Maria Isabel Saavedra (Argentina)
Maria Jaralabidi (Grécia)
Maria José Quintela (Portugal)
Maria Teresa Horta (Portugal)
Mariana Ianelli (Brasil)
Marília Miranda Lopes (Portugal)
Myriam Fraga (Brasil)
Nuno Brito (Portugal)
Paulo Tavares (Portugal)
Pompeu Miguel Martins (Portugal)
Rafael Correcher Haro (Espanha)
Rafael Saravia (Espanha)
Rita Grácio (Portugal)
Rui Tinoco (Portugal)
Samuel Pimenta (Portugal)
Santiago Aguaded Landero (Espanha)
Sara Canelhas (Portugal)
William Zeytounlian (Brasil)
 
ENSAIO
 
Érico Nogueira (Brasil)
Miguel Real ( Portugal)
Victor Oliveira Mateus (Portugal)
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quarta-feira, 11 de março de 2015





Mostrei-lhe Cumes que ela nunca vira _
"Sobes?", disse eu
Ela disse - "Não" -
"Comigo" - disse eu - Comigo?
Mostrei-lhe Segredos _ o Ninho da Manhã _
A Corda que as Noites estenderam _
E agora _ "Convidas-me a ficar?"
Ela não soube bem se dizer Sim _
E então, eu afrouxei a minha vida _ E ali,
Para ela, brilhou solene a Luz,
Tão mais quanto mais longe a sua face _
Como podia ela, ainda, dizer "Não"?




   Dickinson, Emily. Duzentos Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2014, p 171 (Tradução: Ana Luísa Amaral).
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terça-feira, 10 de março de 2015



Vai até Ele! Carta feliz!
Diz-Lhe _
Diz-Lhe da página que não escrevi _
Diz-Lhe _ que eu disse só Sintaxe _
Mas pus de lado o Verbo e o pronome _
Diz-Lhe como voavam os meus dedos _
Se arrastavam depois _ tão _ devagar _
Que desejavas ter olhos no papel _
Para veres o que os fazia mover _


Diz-Lhe _ que não foi Escritor Experiente _
Adivinhavas _ pela frase tão esforçada _
Ouvias o Corpete em luta, atrás de ti _
Como se segurasse de uma criança o querer _
Quase te comoveste _ tu _ com tal labor _
Diz-Lhe _ não _ aí podes fingir _
Pois o Seu Coração se partiria ao saber _
E a seguir tu e eu, ficámos mais caladas.


Diz-lhe _ do fim da Noite _ antes de terminarmos _
E o Relógio gritava e repetia "Dia" !
E tu - tão ensonada _ a implorar o fim _
O que faltava de falar _ então?
Diz-lhe _ como ela te selou _ Cuidando!
Mas _ se Ele perguntar onde te escondes
Até amanhã _ carta Feliz!
Gesto Coquette _ faz que Não !




   Dickinson, Emily. Duzentos Poemas. Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p 105 (Tradução: Ana Luísa Amaral).
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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

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244

Quem ama conhece
o mundo inteiro. Tão pequeno,
ó sol derradeiro


245

Se os poetas mataram
o amor não sei. Sei, sim,
que o sinto imortal


246

Amo-te. Tão fundo
que nem sei se vou regressar
ao sol do agora


   Brito, Casimiro de. Eros Mínimo. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2015, p 88.
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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015


58

No amor imita-se
a lua e o sol. Uma vem,
o outro afasta-se


59

As patas da neve
roçam na janela. Já não estás
a meu lado


60

Nascem águas do chão
ou do templo em ruínas
do meu coração?


  Brito, Casimiro de. Eros Mínimo. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim Editora, 2015, p 26.
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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

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Desapareceu
Nos interstícios
Da cidade imensa

A solidão cósmica
É muito simplesmente
Em certas noites frias de Janeiro
Uma paragem de autocarro

(Tinha-te imaginado nos meus braços
Até raiar o dia)

Desapareceste
No autocarro
Depois de um beijo fruste

Em vez de desaparecer
- Para onde? Para sempre? -
Vagabundeei
Pelas ruas de Chelsea
Que me conhecem de cor


 Lacerda, Alberto de. O Pajem Formidável dos Indícios. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p 55.
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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015





    " Ritornello "




Cada ausência complica
Cada vez mais o labirinto


Encontrei-te no meio do caminho


Perdemo-nos um do outro
Repetidamente


Quando presentes
Olhos nos olhos
O mundo se nos abre em contraponto
Que por instantes
De uma eternidade
Nos revela tudo


Depois acordamos


E recomeça um ciclo
Sempre diferente




   Lacerda, Alberto de. O Pajem Formidável dos Indícios. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p 44.
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domingo, 22 de fevereiro de 2015

(Um poema da minha meninice que acabei agora mesmo de encontrar. Sempre o julguei perdido, mas vasculhando em papelada antiga devido a um jogo do Face, acabo por descobrir a tralha toda do meu secundário e lá andava também uma série de "coisas" destas. Este - lembro-me bem!- era o meu preferido na época. Pelas influências dos realistas que aqui se notam sobretudo de Guerra Junqueiro e pelo final nitidamente ultra romântico com laivos de João de Deus e de Soares dos Passos, eu deveria ter uns 16/17 anos,  enfim, uma mera curiosidade histórica, para nos fazer sorrir):

   " A velha da meia tarde "

Sentada no banco do jardim,
obliquando o corpo para a terra,
a velha ausenta-se do espaço
adquirindo apenas olhos para o tempo:

- "Escute menino
que horas são?"

Pergunta-me ela sempre que passo
semelhantemente ausente
e de olhos fitos no chão.
No seu ar, perdido e lasso,
a velha ausenta-se do espaço,
sentada no banco do jardim.

- "Menino, ó menino,
que horas são?"

Pergunta-me ela a mim,
sempre que por ela passo
com os olhos fitos no chão.
Com o seu casaco enorme e castanho,
com o seu gorro de lã espessa e azul,
com a sua sombrinha na mão -
Ali está ela, em pleno Verão,
embora à margem do tempo.

- " olhe lá, olhe lá,
ó meu caro menino
que horas são?"

Pergunta-me ela sempre que passo
com os olhos fitos no chão.
"Cinco e meia." - E ela fica satisfeita.
"Um quarto para as três". - A frase é demasiado longa,
ela não a entende,
então eu mexo os lábios, pronunciadamente,
tiro mesmo uns minutitos para lhe facilitar a compreensão,
aceno-lhe com a mão -
E ela diz que sim, que entendeu
- repete mesmo para eu saber que entendeu -,
e eu sorrio e continuo
de olhos fitos no chão,
para além da velha encasacada
que esmiuça o tempo
das minhas tardes de Verão:

- "Menino, ó menino,
que horas são?"

Ainda um pouco cedo, minha amiga,
mas quando te fores
- e pelo sim pelo não -
reserva-me esse banco,
para eu matar também
as minhas tardes de Verão.

* * *

Agarrada agora à grade ferrugenta
obliquando o corpo para o espaço
a velha ausenta-se da terra
adquirindo um ar sonâmbulo e demente
- sem querer saber já do tempo,
que para ela é indiferente -,
para me pedir trocos
com o seu ar ausente:

- " Menino, ó menino,
deia-me qualquer coisinha!"

Pede-me ela sempre que passo
com o meu ar perdido e lasso
e esta tristeza que é só minha.
Sem o seu gorro de lã espessa e azul,
sem o seu casaco enorme e castanho,
a velha traz antes um vestido desbotado
e de grande tamanho -
E ali está ela, parecendo a meu lado,
mas na realidade sozinha:

- "Menino, ó menino,
deia-me qualquer coisinha!"

Mas eu, quando não tenho, finjo nem ouvir,
outras vezes dou
só para a ver sorrir
a este outro pedinte que sou.
E lá fica ela
com a mesma sombrinha na mão
agora revirada
como um pequeno telhado levantino.
Mas há outros dias em que me pede três e quatro vezes
e eu digo-lhe - zangado - que já dei.

- " Ó menino, desculpe,
eu vejo mal
e confundo tudo o que sei!"

Eu sorrio então, confundido também
e misturando os caminhos
e, como ela, passando por onde passei
nesta vida de pedinte,
que não é só dela,
mas também minha:

- "Menino, ó menino,
deia-me qualquer coisinha!"

Ó minha amiga,
minha musa,
que te posso eu dar
que a mim não tenha de roubar?
Somos assim nós os pedintes:
um incansável estender de mão
em todos nós tão iguais
diferindo apenas o pregão.
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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

   Ernest lutte avec sa vie et son écriture. Il ne peut changer sa vie, mais il souhaite donner à son écriture une nouvelle forme. Ce ne sera plus une description d'ambiance lourde de détails mais rien que le nécessaire absolu. Pendant longtemps il a souhaité écrire sur l'homme, l'homme en lui-même, sans aucun trait ethnique. Ses héros (...). Ils se battaient pour la justice, la fidelité et la pureté. Depuis l'arrivée d'Iréna, beaucoup de choses ont changé dans sa vie. Toutes ces années il a tenté de fuir sa vie, de l'ignorer, de construire sur le des tours géantes. À présent, elle s'élève vers lui telle une ombre, et il sait qu'elle demande réparation (...).
   Iréna sait qu'il n'y a rien de tel qu'une soupe de légumes pour le tirer de l'obscurité. Son combat contre la mélancolie est un combat violent. Avant, il passait parfois des journées entières au lit, mais Iréna ne lui permet plus d'être dépendant de ses douleurs. Elle invente toutes sortes de ruses et de charmes pour l'attirer vers la table. Elle croit qu'une bonne nourriture peut le sortir de sa détresse.
   Parfois, pour lui faire plaisir, elle met son chemisier brodé et la jupe assortie à la broderie, se maquille et porte des boucles d'oreilles. Ernest est três heureux de voir Iréna en habits de fête.
   Souvent, témoin de son combat, elle veut lui dire: Je ferai tout ce que tu me demanderas de faire. Ernest refuse la plupart du temps d'être assisté, même lorsqu'il est faible (...).
   Lorsque Ernest revêt son costume gris et son manteau d'hiver, noue autor de son cou une écharpe de laine fine et dit "Au revoir", Iréna ressent avec une fierté dissimulée que ses actes ont porté leurs fruits, et elle demeure longtemps enveloppée par cette joie.


  Appelfeld, Aharon. L'amour soudain. S/c.: Éditions de l'Olivier/ Le Seuil, 2004, pp 63 - 64.
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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015



   A coleção contramaré da Editora Labirinto assenta em dois pressupostos fundamentais: um, conceber o seu domínio de publicação como um território estruturalmente livre e avesso a todo o tipo de enfeudamento estilístico ou outro; dois, acreditar que é a qualidade dos escritos que determina a qualidade das coleções e não a miragem contrária.
   A contramaré é atualmente coordenada por Victor Oliveira Mateus e por Daniel Gonçalves e os seus títulos podem ser: ou pedidos diretamente para a Editora Labirinto ou, no caso de Lisboa, adquiridos na Livraria Pó dos Livros.
   Esta nota justifica-se pelo facto de ter sido hoje posto à venda o livro quatro desta série.
   Seguem-se, portanto,  os títulos já publicados:

Nº 1 "Temor Único Imenso" de Rui Almeida

Nº 2 "Todos os Pecados do Mundo" de Cecília Barreira

Nº 3 "Vida Breve" de Amadeu Baptista

Nº 4 "Da Eterna Vontade" de Inez Andrade Paes
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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

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   Quanto a mim, não me sinto feliz nem infeliz; estou suspenso como um cabelo ou uma pena, na amálgama nebulosa dos meus pensamentos. Falei da inutilidade da Arte mas esqueci-me de reconhecer as consolações que ela proporciona. O alívio que deriva do género de trabalho que produzo com o cérebro e o coração reside nisto: só no silêncio activo do pintor ou do escritor é que a realidade pode ser reelaborada e revelada no seu aspecto verdadeiramente significativo. As nossas acções quotidianas nada mais são do que os ouropéis que velam o vestido de ouro - a essência da forma. É na sua arte que o artista encontra, pela imaginação, um feliz compromisso com tudo quanto o feriu na vida quotidiana, e não para escapar ao seu destino, como faz o homem vulgar, mas para realizá-lo da forma mais adequada e completa que lhe for possível.


  Durrel, Lawrence. Quarteto de Alexandria Vol. 1,  Justine. S/C.: Editora Ulisseia, 3ª Edição, pp 13 - 14.
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domingo, 8 de fevereiro de 2015



   Entre a gente que considerava ridículo esse género de casamento, gente que indagaria no seu próprio caso: "Que pensará o Sr. de Guermantes, que dirá Bréauté, quando eu desposar a menina de Montmorency?", entre as pessoas que alimentavam essa espécie de ideal social, teria figurado, vinte anos antes, o próprio Swann, aquele Swann que tivera tanto trabalho para ser admitido no Jockey e contara naquele tempo com um casamento brilhante que, consolidando a sua posição, acabaria por torná-lo um dos homens mais distintos de Paris. Mas as imagens que um casamento desses apresenta ao interessado têm necessidade, como todas as imagens, para não empalidecer e apagar-se completamente, de ser alimentadas do exterior. Suponhamos que o nosso mais ardente desejo é humilhar o homem que nos ofendeu. Mas, se se mudou para outras terras e nunca mais ouvimos falar dele, esse inimigo acabará por não ter a mínima importância para nós. Se perdemos de vista durante vinte anos todas as pessoas por causa de quem desejaríamos entrar para o Jockey ou para o Instituto, já não nos tentará em absoluto a perspectiva de ser membro de um ou de outro.


  Proust, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido, Vol. 2,  à sombra das raparigas em flor. Lisboa: Livros do Brasil, s/d., pp 42 - 43 ( Tradução: Mário Quintana ).
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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015



   É verdade que em todas as páginas dos meus cadernos escrevia indefinidamente o seu nome e o seu endereço, mas, à vista daquelas vagas linhas que eu traçava sem que ela por isso pensasse em mim, que a faziam ocupar em redor de mim tanto espaço aparente sem que por isso ficasse mais ligada à minha vida, sentia-me desanimado, porque não me falavam de Gilberta, que nem sequer as veria, mas do meu próprio desejo, que pareciam apresentar-me como algo de puramente pessoal, de irreal, de fastidioso e de impotente. O mais urgente era que Gilberta e eu nos víssemos e pudéssemos fazer a confissão recíproca do nosso amor, que até esse momento não teria por assim dizer começado. As diversas razões que me tornavam tão impaciente de a ver seriam menos imperiosas, sem dúvida, para um homem maduro. Acontece mais tarde que, tornando-nos peritos no cultivo dos nossos prazeres, nos contentemos com aquele que sentimos ao pensar numa mulher como eu pensava em Gilberta, sem nos inquietarmos por saber se essa imagem corresponde à realidade, e também com o prazer de amar sem ter necessidade da certeza de que ela nos ama; pode ainda suceder que renunciemos ao prazer de lhe confessar a nossa inclinação por ela, a fim de manter mais vívida a inclinação que ela tem por nós, imitando esses jardineiros que, para obter uma flor mais bela, lhe sacrificam várias outras. Mas no tempo em que eu amava Gilberta, julgava ainda que o Amor existia realmente fora de nós; que, permitindo, quando muito, que afastássemos os obstáculos, oferecia as suas venturas numa ordem à qual não se era livre de mudar coisa alguma (...).
   Mas quando chegava aos Campos Elísios (...) desde que me via na presença daquela Gilberta Swann, com quem contara para refrescar as imagens que a minha memória fatigada já não encontrava, daquela Gilberta Swann com quem ontem brincara, e que um instinto cego acabava de fazer-me saudar e reconhecer, um instinto como esse que, na marcha, nos põe um pé diante do outro antes que tenhamos tempo de pensar, logo tudo se passava como se ela e a menina que era objecto dos meus sonhos fossem duas criaturas diferentes.


   Proust, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido, Vol. 1, no caminho de Swann. Lisboa: Livros do Brasil, s/d, pp 394 - 395 ( Tradução: Mário Quintana ).
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