domingo, 9 de fevereiro de 2014

 
 
   A autocastração era uma via de sentido único para a personificação ritual. Nos mistérios pagãos, que influenciaram o Cristianismo, o devoto imitava e procurava a união com o seu deus. O sacerdote da Grande Mãe mudava de sexo para se converter nela. O transexualismo era uma escolha árdua, o travestismo era-o menos. Nas cerimónias de Siracusa os homens eram iniciados envergando a túnica púrpura de Deméter. No México pré-colombiano, uma mulher representando a deusa era esfolada, após o que um sacerdote masculino se cobria com a sua pele. O sacerdote castrado do culto da Grande Mãe era referido como "ela". Daí que quando o Átis de Catulo se castra, o pronome que o designa seja alterado do masculino para o feminino. Hoje em dia, a etiqueta exige que nos refiramos a uma drag queen urbana utilizando "ela", mesmo quando envergue roupas masculinas.
   A iluminação de carácter espiritual produz a efeminização do homem. Mead observa que "a complexa estrutura biológica da mulher converteu-se num modelo para o artista, o místico e o santo." A intuição ou a percepção extra-sensorial são uma forma feminina de escutar a voz secreta das coisas e do que está para além das coisas. Farnell afirma que "muitos obervadores antigos repararam que as mulheres ( e os homens feminizados ) eram especialmente propensos a acessos de religiosidade orgiástica". A histeria significa loucura uterina ( do grego ustera, "útero"). As sibilas e os oráculos eram mulheres, mais propensas a visões proféticas. Heródoto fala dos Enares citas, profetas masculinos afectados por uma "doença feminina", provavelmente a impotência sexual. O fenómeno designado por xamanismo migrou para Norte, em direcção à Ásia Central, e foi detectado nas duas Américas e na Polinésia. Frazer descreveu as etapas de transformação sexual dos xamãs que fazem lembrar as dos actuais candidatos a cirurgias de mudança de sexo (...). O xamã siberiano, que usa um cafetã de mulher onde são cosidos dois grandes discos imitando seios é, segundo Mircea Eliade, um exemplo de androginia ritual, simbolizando, a coincidentia oppositorum ou reconciliação dos opostos. (...)
   Tirésias, o xamã andrógino grego, é descrito como um velho com longas barbas e descaídos seios de mulher. (...) Eu adoptei o nome "Tirésias" para designar uma categoria de andrógino: a do homem que cuida dos filhos, a mãe masculina. É uma figura que podemos encontrar nas esculturas dos deuses fluviais clássicos, na poesia romântica ( Wordsworth e Keats ) e na cultura popular moderna ( apresentadores de talk-shows televisivos).
(...) O oráculo délfico é uma mulher invadida por um espírito masculino. Tal como os grandes dramaturgos e romancistas mudam mentalmente de sexo ao conceberem as suas personagens femininas, a Pítia sofre uma usurpação da sua identidade.
 
 
    Paglia, Camille. Personas Sexuais, Arte e Decadência de Nefertiti a Emily Dickinson. Lisboa: Relógio D' Água Editores, 2007, pp 57 - 59.
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