( Este artigo publicado, em 2011, na Revista Textualino andava perdido, daí nunca ter aparecido na Dispersa 1 , agradeço a quem teve a gentileza de mo reencaminhar para ser postado agora na Dispersa 2. Obrigado!)
" Breves Notas Sobre o Livro Paredes Abertas ao Céu de Inez
Andrade Paes "
Ao contrário de muita da poesia escrita nos últimos anos em
Portugal continental, de raiz fundamentalmente urbana, com os seus ícones, as
suas preocupações e, muitas vezes até, com o panegírico das suas vivências, a
poesia feita por grande parte dos autores cuja nacionalidade e/ou origem é a
África de língua oficial portuguesa apresenta-nos um paradigma bastante
diferente. Se referi apenas o continente, é porque me parece que muita da
poesia oriunda do Portugal insular não enforma desse alarde do citadino, embora
nalguns casos sejamos tentados a cair na armadilha que alguns autores nos
tentam apresentar, como é o caso do último livro de Álamo de Oliveira e de
alguns poemas de Daniel Gonçalves. Mas em grande parte da poesia onde circula o
áfrico sangue o discurso é distinto, discurso esse, que, ao contrário do português,
assume os vários territórios ecológicos que em si se entranham dando azo a uma
iniludível especificidade: “Chão inconquistado, chama-me teu que sobre minha
fronte se/ esvai a lua esburacada na sanzala.”, diz-nos o serviçal de Conceição
Lima (In “O útero da casa” p 35), “Eu terra eu árvore eu sinto/ todas as veias
da terra/ em mim e/ o doce silêncio da noite” afirma-nos o Adorno de Paula
Tavares (in “Como veias finas na terra” p 26) – esta recorrência do natural, do
mundo do trabalho e da interioridade ante ambos difunde-se por tantos e tantos
poetas deste universo, para além das já citadas, de Craveirinha a Mia Couto, de
Manuela Margarido a Alda Espírito Santo, atente-se, por exemplo, ao principal
título desta última: “É nosso o solo sagrado da terra”.
É neste conjunto de vozes que a escrita de Inez Andrade Paes
assenta as suas coordenadas, pois apesar de, neste seu livro, estarmos frente a
uma poesia centrada fortemente na memória e na solidão, a terra assume uma
constância que trespassa a obra: “cá em baixo a chuva de sal deixará um rasto
branco/ a decorar brilhante os corais ainda/ na Baía de Pemba “ (p 33); “ o
vento disse/ enxugas-me as lágrimas de areia que trago de África” ( p 52); “ já
ambas/ vestidas de África” (p 74). A memória, a solidão e a saudade que os pais
lhe deixaram, nomeadamente a portentosa rememoração de Glória de Sant’Anna, não
nos surgem como um qualquer rumorejar à margem dos seus contextos, elas são
antes a afirmação de Relações que subsistem para além da presencialidade física
do Outro. Assim como a Saudade que a Inez escreve à saciedade nada tem a ver
com Pascoaes, já que é antes a constatação de um por si vivido que ainda
permanece em toda a falha que transporta, daí essa saudade apresentar-se-nos
sob uma multiplicidade de formas nomeadamente a invocação, a dor e o desalento:
“chegaria até ti/ se a estrada não prendesse meu cabelo/ nos ramos do
embondeiro e me quisesse lá” (p 30). A presença da terra mátria e da
progenitora chega a assumir, por vezes, a fusão perfeita como no poema “Maama”
(mãe, na língua macua): “limpa o caminho agreste de mato rasteiro/ de olho
preto redondo e fixo/ pousa em minha mão como missanga perdida/ ao acaso” (p
13); noutras, invade mesmo o espaço do sagrado, como no poema “Senhora” onde
uma tríade feminina se fecha sobre si própria: a mãe, a Virgem e a terra. Por
fim, e como corolário deste quotidiano saudoso da poeta, a casa desvenda-se
como instância a meio caminho da terra e da voz que naquela se inscreve, mas
esta casa não é a representação sensível de uma qualquer entidade metafísica, nem sequer o
sombrio espaço onde elites guardam o vinho, o kit e o sexo por fazer, a casa em
Inez Andrade Paes, apesar de coisa objectiva, tem as PAREDES ABERTAS AO CÉU e a
vida não se cumpre aí em exibicionismos de possuidores desapossados, mas antes
na macieza de gestos simples e na autenticidade de sentires que ao olhar alheio
se mostram sem pretensões nem ludíbrio: “ risos na sala aberta ao sol/ branca
toalha na mesa/ a aba/ abana a aba// abana/ e no centro a chávena” (p 46), “ de
repente/ sinto o ar morno da sala/ lento a chegar/ a embeber o ar frio/ e a
espalhar um chão/ de mar/ transparente” (p 59).
Ao contrário do seu primeiro livro, “O Mar Que Toca em Ti”,
neste a forte carga emotiva não se espraia pela obra num confessionalismo
rondando o diarístico, aqui o pungimento das palavras da poeta não cai sobre as
páginas sem antes ser submetido ao atento, e também sofrido, trabalho da razão:
“ me devoro de ideias e sentimentos/ que não quero/ me devoro e cumpro mesmo/
errando na atmosfera deixada “ (p 63), “ envolvo o corpo em concha/ e medito/
no espaço/ entre a palavra dita/ e a ferida aberta” (p 67). E é este trabalho
de um pensamento emotivo, ou de toda uma emotividade devidamente pensada, que,
por sua vez, se enraíza e expressa numa terra bem sua, que faz da voz de Inez
Andrade Paes uma voz singular, perfeitamente identificável e com um destino
poético por cumprir.
VICTOR OLIVEIRA MATEUS
Lisboa, 14 de Março de 2011
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