segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014




                 "  Fala de Adriano para Yourcenar  "

 

Somos as viagens que fizemos, a ânsia de encontrar
no turbilhão dos homens todas as cidades que havíamos
de construir. Somos esta imortalidade a que os deuses
nos condenaram e que agora fruímos com a desabusada
naturalidade que alguns entendem por afectação
de gelo ou por um aristocratismo que em verdade
nunca sentimos. Somos o azul inconfundível do Egeu
com suas ilhas e templos, com suas ruinas e colinas
onde as mais antigas vozes ainda se levantam,
para logo se emaranharem na agitada distracção
dos homens. Somos este vazio que ficou, esta memória
a que nenhum de nós consegue fugir: tu a vigiar
um cancro impiedoso, eu com um afogado nos braços.
Ambos derrotados antes de tempo! Ambos com toda
a glória que nos insistiam, apesar do nosso cansaço,
do nosso isolamento, da nossa fome de silêncio.
Somos esta culpa por não termos entendido,
por não termos sabido ler ternura e merecimento,
por termos deixado escapar o que afinal era
bem nosso por direito e coração. Somos este fogo
que não tem nome. Este monstro que nos devora
e envenena ainda as manhãs, quando, insones,
tacteamos a penumbra e não encontramos
os seus rostos, os seus corpos tão prolongamento
dos nossos, o seu respirar que nos enchia a vida
e cuja ausência nos desenha hoje essa morte
que se avizinha. Somos este aziago anoitecer,
este trémulo deambular, que, no sopro ordenador
do mundo, espera a barca que nos devolverá
tudo aquilo de que não cuidámos como devíamos.
 
 
          Mateus, Victor Oliveira. Clepsydra, Antologia Poética. Lisboa: Coisas de Ler, 2014, p 182.
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