segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018



                                    Espinosa: Ciência Intuitiva e Virtude

.
1. - Introdução
.  
   Não podendo ser reduzida a uma mera continuação do cartesianismo, a filosofia de Espinosa chama a si a resolução de questões radicalmente distintas, embora aproveitando-se de um certo tipo de concetualização baseada na clareza e distinção, que haviam sido o suporte do pensamento de Descartes, mas, se a este era a verdade em ciência que o absorvia, a Espinosa preocupa-o antes uma outra questão, a saber: "que l'amour de Dieu, impossible sans une union nécessaire de notre être avec l'Être divin, est seul capable de nous sauver" (In Le Spinozisme de Victor Delbos. Paris: Lib. Philosophique J. Vrin, 1972, p 211). Temos assim, de um lado uma problemática de base científica, do outro uma teorização fundamentalmente religiosa, ética e política.
   Espinosa, produto de uma Holanda fervilhante social e religiosamente, expõe na Parte I da sua obra fundamental ( Ética ) a sua conceção de divindade. Essa parte da obra, de que já se falou anteriormente, pode ser considerada um autêntico tratado de Ontologia, onde esse Deus, tão polémico, constituído por atributos infinitos produz ( A Espinosa não era querida a ideia da teologia tradicional de Criação, mas antes uma outra de proveniência neoplatónica, a emanação!), produz, dizia, numa infinidade de modos. E é exatamente da forma específica de um desses modos de existir que se tratará aqui: o homem. Homem esse que não tem nenhum "privilège dans la nature et toutes ses pensées et conduites sont soumisses à des lois nécessaires, conséquences de la nature divine elle-même" ( In La Moral de Spinoza de Sylvain Zac. Vendòme: P.U.F., 1972, p 11). E, aquilo que aqui nos parece levar à negação de uma Moral em Espinosa acaba antes levando-nos a uma Moral de tipo diferente: fundada no determinismo e numa prospeção exemplar da natureza humana. Mais do que escrever um Tratado de deveres, a Espinosa impottava descortinar a essência do homem, como este habita o mundo e como finalmente se acabará unindo a esse Deus de que nos falou na Parte I da sua Ética.
.
2. - Natureza da Alma e problemática do conhecimento
.
    Gostaria de dar aqui ênfase a duas questões prévias que me parecem de utilidade para o assunto a abordar aqui::

a) a conceção espinosista da alma (Cf. Parte II da Ética )
.
b) a íntima articulação que vejo entre uma forma de elevação da alma e o apuramento do ato de conhecer.
.
   Relativamente à primeira alínea, com Espinosa rompe-se essa dicotomia de alma/ corpo, com o respetivo imperialismo da primeira sobre o segundo, aliás, nesta mesma linha e contra a ideia de Deus como puro espírito, Espinosa - no Esc. 2 da Proposição XV da Parte I da Ética - diz: "(...) desconheço a razão pela qual a matéria seria indigna de natureza divina, visto (pela proposição 14) não pode haver fora de Deus Substância alguma pela qual ela fosse afetada." Ora vejamos, na Proposição XI - Parte II da Ética, lê-se: "A primeira coisa que constitui o ser atual da Alma humana não é senão a ideia de uma coisa singular existente em ato." Vemos, pois, a alma constituída essencialmente por uma ideia, mas... pode ser esta última pura, ou melhor, pode ela ser a ideia de uma coisa inexistente? Não! Essa ideia só pode ser de algo singular existente também em ato e, mais à frente, na Proposição XII encontramos: "(...) se o objeto da ideia que constitui a Alma humana é um corpo, nada poderá acontecer nesse corpo que não seja percebido pela alma e Espinosa acaba concluindo na Proposição XIII:" O objeto da Ideia que constitui a Alma humana é o corpo, ou seja, um modo determinado da Extensão , existente em ato, e não outra coisa". Assistimos, por conseguinte, a uma reabilitação do corpo! Embrenhando-se depois o autor em teorizações várias em torno do corpo (duros/moles; constituição, etc.) chega-se finalmente, na Proposição XVI, à ideia de afeção, que aparece já definida na Parte III da Ética, Definição III: "Por afeções, entendo as afeções do corpo pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou ou entravada, assim como as ideias dessas afecções".
   Veja-se agora como tudo isto se articula com a alínea b) desta secção: é no escólio II da proposição XL da Parte II da Ética que encontramos os vários graus de conhecimento:
.
Graus de conhecimento:
- Pela experiência vaga
- Do 1º género: Opinião ou Imaginação
- Do 2º género: Razão
- Do 3º género: Ciência Intuitiva (que precede da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas).

Ora, o conhecimento do 1º género é causa da falsidade, enquanto que os do 2º e 3º géneros nos ensinam a discernir o verdadeiro do falso. Vislumbra-se assim qual será a tarefa da alma, ou seja, qual o percurso que o homem terá de trilhar, através de um conhecimento que salve, para atingir a suprema virtude.
.
3. - Teorização das afeções
.
3.1. - Ação e Paixão
.
   Para que possamos compreender até onde o homem pode chegar urge que se analise os conceitos que povoam todo esse caminho do ser humano até à sua divinização. É o que agora iremos fazer! Donde parte o homem? De que reino obscuro principia ele a sua caminhada? Que forças subreptícias o atrasam e, muitas vezes, o impedem de chegar à sua meta?
   Pela designação de afeções não se compreende um todo homogéneo, mas toda uma rede tecida através de convergências e oposições. Encontramos três afeções primárias, das quais todas as outras derivam:
.
1º - Alegria: "a paixão pela qual a Alma passa a uma perfeição maior" (In Ética Parte III, Proposição XI, Escólio.

2º - Tristeza: "a paixão pela qual a Alma passa a uma perfeição menor" ( Cf. Ética Parte III, Proposição XI)

3º - "(...) o apetite não é senão a própria essência do homem (...) o desejo é o apetite de que se tem consciência" ( In Ética Parte III, Proposição IX, Escólio)

   Vê-se aqui que a tristeza "diminui ou reduz a capacidade de agir do homem" (In Ética Parte III, Proposição XXXVII), que, necessariamente, acabaria numa forma de passividade, mas a essência do homem é o desejo, o homem tende essencialmente para a ação, e esta não é mais do que a conservação do seu ser. Eis-nos chegados a uma bifurcação:

Ações: indicam a nossa potência

Paixões: indicam a nosso impotência

Concluímos, portanto:

a) Sofremos quando uma coisa externa limita a nossa atividade

b) "Pas de passion sans action" (In La Moral de Spinoza de Sylvain Zac. Vendòme: P.U.F., 1972, p 30).

Podemos, portanto, dizer, que existe uma relação dialógica entre as ações e as paixões, e, estas bloqueando os acessos do homem à virtude, impelem-no para uma passividade que é contrária à sua essência. Como superar então esta situação?

3.2. - Inadequação e passividade
.
   É da essência do homem tender à conservação do seu ser, mas "o homem está sempre necessariamente sujeito às paixões" (In Ética Parte IV, Proposição IV, Corolário) e estas não são determinadas pela nossa potência com que nos esforçamos à nossa conservação, mas antes pela potência das causas externas. Um outro factor surge, pois,  responsável pelas nossas paixões: as causas externas, e, consequentemente, responsável pela tendência à passividade. Mas, a nossa alma, "enquanto tem ideias adequadas, é necessariamente ativa (...) mas enquanto tem ideias inadequadas é necessariamente passiva..." ( In Ética Parte III, Proposição I). Assim, a alma é tanto mais ativa quanto mais ideias adequadas tem e, simultaneamente, será tanto mais passiva quanto mais ideias inadequadas possua.
   Aqui prende-se uma questão já aflorada e que tem a ver com a relação alma-corpo: "se uma coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa mesma coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a potência de pensar da nossa alma" (In Ética Parte III, Proposição XI). Vimos já que esta não é uma filosofia que conduza ao martírio do corpo para salvação da alma, mas pelo contrário, as potencialidades intrínsecas da alma têm de se desenvolver concomitantemente com a saúde do corpo - a um corpo são corresponde necessariamente uma razão apta à superação das paixões.

3.3. - Das Ideias Inadequadas aos fundamentos da Virtude

   Vemos, por conseguinte, que "la passion est symptôme d'une maladie de l?âme, dont la puissance de vivre est surmontée par la puissance des causes exterieures. L'homme, sous le régime de la passion, n'a plus à redouter l'enfer après sa mort, car il le porte en lui-même" (Sylvain Zac, Op. Cit. p 38). Ela tem efeitos a dois níveis: por um lado afasta-nos de nós próprios pela anulação da nossa parte essencial, por outro, ela dificulta uma sã sociabilidade (Acerca das paixões como fator impeditivo de um são relacionamento dos homens ver também as Proposições XXXII e XXXIV da Parte IV da Ética ), pois só a razão acaba favorecendo uma autêntica relacionação entre os homens, sendo a imagem de uma sociedade perfeita aquela que se funda na comunicação livre de ideias verdadeiras, só vivendo sobr a Razão os homens "concordam sempre necessariamente em natureza" (In Ética Parte IV, Proposição XXXV).
   Veremos à frente que é, então, procurando o que lhe é útil que o homem fundamenta a virtude que lhe é própria. Que se quer dizer com isto? Reduzindo o homem a esse desejo de busca do que lhe é útil, não enveredaremos por uma visão animalesca do homem suprimindo as suas necessidades à custa deste ou daquele bem material? De modo nenhum! Ora vejamos: pela Proposição XXIV da Parte IV fica estabelecido que o homem age por virtude, quando, como já se viu, tende à conservação do seu ser sob a direção da razão e segundo o princípio da utilidade, mas, o que é útil acima de tudo é o que conduz ao conhecimento, assim, o fundamento da virtude no homem não é algo que lhe seja exterior, mas antes é o esforço de compreender que o homem empreende o primeiro e único fundamento da virtude. E é bom tudo aquilo que nos possa ajudar a compreender, sendo o bem supremo da alma o conhecimento de Deus, portanto, a suprema virtude da alma é conhecer Deus.

4. - Superação das paixões - a Virtude

4.1. - A procura do útil e o aperfeiçoamento da Razão


   A virtude é, pois, potência, mas da inteligência. Mas, conseguirá esta última reduzir totalmente a paixão? E, em caso afirmativo, como o fará? Da seguinte forma: enquanto não somos dominados pelas afeções que são contrárias à nossa natureza, somos capazes de encadear as afeções do nosso corpo segundo a ordem da inteligência, ou seja, podemos durante esse período formular ideias claras e distintas; durante esse tempo conseguimos não ser afetados pelas más afeções, associando estas últimas a regras que as possam neutralizar, por exemplo, se alguém vê que busca demasiado a glória, pense no uso correto desta e não no seu abuso. Estamos, portanto, em pleno processo de busca daquilo que nos é útil, que mais não é do que a capacidade do homem de se elevar a Deus. Na Proposição XI de Parte V da Ética, Espinosa começa a infletir o seu raciocínio num sentido que mal se descortina, mas na Proposição XII, acerca do processo acima citado, já nos diz podermos juntar mais facilmente as imagens das coisas às imagens que se referem às coisas que compreendemos clara e distintamente, e, na Proposição XIV acaba dizendo que a alma pode fazer que todas as afeções do corpo, ou seja, as imagens das coisas, se refiram à ideia de Deus. Eis-nos, portanto, frente ao nó central do que temos vindo a dizer! De conceito em conceito, acabamos chegando a uma Razão  que aperfeiçoando se tenta libertar das paixões, mas, subtilmente, Espinosa  acaba dizendo-nos que este esforço do homem que se tenta compreender e si mesmo e às suas afeções de uma forma clara e distinta, desemboca necessariamente no amor a Deus, e é "este amor para com Deus que deve ocupar a alma acima de tudo" ( In Ética Parte V, Proposição XVI).

4.2. - A Suprema Beatitude

   A beatitude não pode ser outra coisa que o contentamento do espírito frente ao conhecimento intuitivo de Deus e aperfeiçoar a inteligência é conhecer a Deus, conhecer os atributos de Deus e as ações que resultam da necessidade da sua própria natureza. O fim do homem, que é conduzido pela Razão, é conceber-se adequadamente a si mesmo e a todas as coisas que caiam sob o seu entendimento. Nada lhe é mais útil que a aproximação a Deus, processo que em Espinosa nos parece também estar intimamente articulado com a constituição de uma sociedade fundada na cooperação (Cf. "Aos homens é-lhes útil, primeiro que tudo, estreitar as relações e unirem-se pelos vínculos que melhor podem fazer deles todos uma só coisa, e de uma maneira geral, é-lhes útil fazer aquilo que serve para consolidar as amizades." In Ética , Capº XII, p 92), já que o homem vivendo em estado natural, entregue às suas paixões, e, até mesmo, à sua solidão, vê-se impossibilitado de alcançar a virtude suprema. Esta virtude primeira é ainda ação, mas ação bem original, ela é contemplação, "compréhension de la structure intelligible des choses" (In Sylvain Zac, Op. Cit. p 47) - eis a ação elevada ao seu expoente máximo!
   A Ciência Intuitiva, ou 3º género do conhecimento, é, pois, a verdadeira responsável pelo alcançar da beatitude, " o esforço supremo da alma e a suprema virtude é compreender as coisas pelo 3º género de conhecimento" (In Ética Parte V, Proposição XXV) e quanto mais a alma está apta a compreender através deste género tanto mais o desejará fazer, assim, vemos que da Ciência Intuittiva vem a maior alegria que para a alma possa existir - a Virtude suprema da alma é conhecer a Deus!

5. - Estado Natural e Sociedade

5.1. - Egoísmo versus Altruísmo

   Impõem-se-nos agora algumas considerações acerca das conceções sócio-políticas de Espinosa, aliás, neste autor as problemáticas Ética e Política correm intimamente ligadas.
   Vemos, então, que inicialmente o homem vivendo em estado natural se encontrava impossibilitado de um acesso à Virtude, aí ele procura unicamente o útil de acordo com os seus estados passionais, o que leva os homens, obviamente, ao confronto permanente. É a selva! Mas "a Razão ensina a praticar a moralidade, a viver na tranquilidade e na paz interior, o que só é possível com a existência de um poder público" (In Espinosa, Bento de. Tratado Político. Lisboa: Editorial Estampa, 1977, Capítulo 2, parágrafo 21, p 28), sabemos, por conseguinte, que a formação de um pacto, do qual saia esse poder público, impões renúncias ao homem, mas ele agora passa a ter muito mais vantagens que desvantagens, e é ainda a Razão que ensina que entre dois males há que escolher o menor. Dentro do Estado o homem apercebe-se de que "não existe nenhuma coisa singular na Natureza que seja mais útil ao homem do que o homem que vive sob a direção da Razão" ( In Ética Parte IV, Proposição XXXV, Corolário I); sob as regras da Razão os homens são utilissimos aos homens, e, se cada um o que mais deseja é compreender, desejá-lo-á igualmente para os outros homens. A busca do útil que o homem empreende para si vai a par com o útil que deseja para os outros - egoísmo e altruísmo são, pois, duas faces de uma mesma medalha.
      Há ainda um pormenor a acrescentar: é que "o homem que é conduzido pela Razão é mais livre na cidade, onde vive segundo as leis comuns, do que na solidão onde obedece só a si mesmo"" (In Ética Parte IV, Proposição LXXIII).  Importa, assim, a Liberdade, já que o próprio das Ditaduras é a coação e esta é sempre ineficaz, pois o exemplo da coragem dos mártires acaba sempre produzindo  efeitos contrários àqueles que os tiranos desejariam obter, já que "É, pois, a servidão, e não a paz, que requer que todo o poder esteja nas mãos de um só (...)" ( In Tratado Político, Capítulo VI, Parágrafo 4, p 52).

5.2. - Uma palavra não dita - Solidariedade

   Explicitando a natureza da alma embrenhamo-nos depois em todo o mecanismo das afeções e daí passámos ao que lhe é oposto: a vida sob a regra da razão!, e desta, finalmente, a uma dada forma de organização social, onde o egoísmo humano se confunde com o altruísmo, e onde a Liberdade é condição fundamental para que se exista. À medida que discorremos em torno deste texto uma ideia parece atravessar subterrâneamente toda esta Ética - a de solidariedade. À barbárie de um Estado Natural , sucede uma sociedade livre onde o homem seja capaz de compreender cada vez mais, num intercâmbio salutar com os outros homens. Se a Virtude suprema é conhecer Deus intuitivamente, urge aperfeiçoarmo-nos para o conseguir e desejar que os outros homens o consigam igualmente.

6. - Outros conceitos fundamentais (Nota: Todas as Proposições citadas neste item dizem respeito à Parte I da Ética )

6.1. - Liberdade e Necessidade

   Uma das mais radicais críticas de Espinosa dirigi-se contra o Finalismo, onde os homens acabam pensando a Natureza agindo à sua semelhança "e até chegam a ter por certo que o próprio Deus dirige todas as coisas para determinado fim" ( In Apêndice à Parte I da Ética p 80) Tal suposição não é mais do que um preconceito derivado do intelecto humano, aliás, supor que Deus atuaria em vista de um fim seria sempre admitir-lhe um certo grau de imperfeição, já que agindo para um fim "necessariamente quereria algo de que carecia " (In História da Filosofia Vol. VI de Nicola Abbagnano, p 206). A conceção finalista é, portanto, uma ficção, um produto da imaginação dos homens que imaginam o mundo criado por um Deus exterior para seu usufruto, aí sim a Liberdade adviria de uma indiferença de Deus, que atuaria a seu belo prazer, mas em Espinosa é bem diferente o conceito de Liberdade, ela é antes o reconhecimento de uma necessidade intrínseca à Natureza - a Necessidade é interior a Deus e, longe de suprimir a Liberdade, funda-a, longe de se excluírem, elas caminham paralelamente: a Liberdade não é mais um livre decreto mas uma livre Necessidade.
   Simultâneamente à crítica do Finalismo segue-se a crítica ao Antropomorfismo, que dota Deus de vontade e intelecto à imagem da compleição dos homens, o que é, obviamente, errado. Ora, se Deus tivesse intelecto este teria de ser distinto, ou melhor, se Deus tendo consciência de si (o que lhe daria uma certa personalidade) fundamentada na existência de um intelecto, este último nunca o poderia caracterizar em si e absolutamente, já que o intelecto (mesmo infinito) não passa de um modo ( Cf. Proposição XXI: " O entendimento em acto, quer ele seja finito quer infinito, assim como a vontade, a apetição, o amor, etc., devem ser referidos à Natureza Naturada e não à Natureza Naturante" ) . O conhecimento de si, não pertencendo à definição absoluta de Deus, é uma consequência de sua natureza, da sua necessidade e isto prende-se com a questão do Realismo de Espinosa.

6.2. - Causalidade

   No segundo diálogo (In "Court Traité", p 63) levantando-se a questão que as coisas criadas diretamente pelos atributos de Deus têm existência para toda a eternidade, não deixa de ser dito que também as outras (que requerem intermediários diversos) não deixam de ser produzidas por Deus imediatamente. Para além desta causa imanente, Deus é ainda aqui considerado como causa emanativa (Cf. o que anteriormente se disse acerca das influências neoplatónicas!) , causa livre, principal, primeira, geral, ele é ainda causa por si mesmo e não por acidente e ainda causa próxima. Mas, reconheça-se, a exposição do Tratado Breve não vem dotada de qualquer preocupação de demonstração nem de qualquer princípio de unidade sistemática, esta só surge na Ética, aí Deus apresenta-se nos seus diversos modos de causalidade: causa emanativa/ativa (Props. XVI, XVII), causa imanente (Prop. XVIII), causa por si, não por acidente (Prop. XVI, Corol, 2), causa principal (Prop. XVII), causa livre (Prop. XVII, Corol 2), causa primeira (Prop. XVII, Corol. 3), causa universal (Prop. XVI), causa próxima (Prop. XXVIII e seu Escólio)

6.3. - Unicidade e Panteísmo

   Parece-me, para concluir, e mantendo-me na Parte I da Ética de Espinosa que aborda a problemática da Substância , chamar a atenção para uma consequência que daqui deriva: a especificidade do seu Panteísmo.
   Tínhamos visto anteriormente que os atributos existiam em Deus não como componentes, mas como constituintes; por mais que se recue buscando a causa de uma ideia chegar-se-á sempre e só ao Pensamento, por mais que se recue buscando a causa de um corpo chegaremos sempre à Extensão - dois atributos irredutíveis! Vemos que Deus começa sendo uma certa unicidade, ou melhor, a unidade intransponível do diverso.
   Agora, baseando-nos em duas das Proposições de Ética Parte I, tentemos reconstituir o Panteísmo de Espinosa (Joaquim de Carvalho chama-lhe um Panteísmo de Razão - não de Intuição sensível -, já que, segundo ele, a identidade de Deus seria apenas com os géneros de seres inteligíveis, In Prefácio à Ética, p 28):

Proposição XIV: "Afora Deus, não pode ser dada nem ser concebida nenhuma Substância"

Proposição XV: "Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido"

Logo, imanência das coisas a Deus (Panteísmo), que arrasta Deus para uma causalidade imanente, ou antes, para que ele seja imanente às coisas. As coisas finitas estão em Deus como essências finitas e Deus está nas coisas finitas, já que estas são infinitas quanto à sua causa. Assim, teremos que a imanência das coisas a Deus é uma propriedade de sua essência, a imanência de Deus às coisas é uma propriedade do seu poder (Cf. o parágrafo deste artigo onde a questão das Propriedades é abordada!).

.
.
© Victor Oliveira Mateus (Anos 70/ 80).
.
.
.