(...) a crítica não reduz o Outro ao Mesmo como a ontologia, mas põe em questão o exercício do Mesmo. Um pôr em questão do Mesmo - que não pode fazer-se na espontaneidade egoísta do Mesmo - é algo que se faz pelo Outro. Chama-se ética a esta impugnação da minha espontaneidade pela presença de Outrem. A estranheza de Outrem - a sua irredutibilidade a Mim, aos meus pensamentos e às minhas posses - realiza-se precisamente como um pôr em questão da minha espontaneidade, como ética. A metafísica, a transcendência, o acolhimento do Outro pelo Mesmo, de Outrem por Mim produz-se concretamente como a impugnação do Mesmo pelo Outro, isto é, como a ética que cumpre a essência crítica do saber. E tal como a crítica precede o dogmatismo, a metafísica precede a ontologia.
A filosofia ocidental foi, nas maioria das vezes, uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo, pela intervenção de um termo médio e neutro que assegura a inteligência do ser.
O primado do Mesmo foi a lição de Sócrates: nada receber de Outrem a não ser o que já está em mim, como se, desde toda a eternidade, eu já possuísse o que vem de fora. Nada receber ou ser livre. A liberdade não se assemelha à caprichosa espontaneidade do livre arbítrio. O seu sentido último tem a ver com a permanência no Mesmo, que é Razão. O conhecimento é o desdobramento dessa identidade, é liberdade. O facto de a razão ser no fim de contas a manifestação de uma liberdade, neutralizando o outro e englobando-o, não pode surpreender, a partir do momento em que se disse que a razão soberana apenas se conhece a si própria, que nada mais a limita. A neutralização do Outro, que se torna tema ou objecto - que aparece, isto é, se coloca na claridade - é precisamente a sua redução ao Mesmo. Conhecer ontologicamente é surpreender no ente oposto aquilo por que ele não é este ente, este estranho, mas aquilo por que ele se trai de algum modo, se entrega, se abandona ao horizonte em que se perde e aparece, se capta, se torna conceito. Conhecer equivale a captar o ser a partir de nada ou reduzi-lo a nada, arrebatar-lhe a sua alteridade. Este resultado consegue-se desde o primeiro raio de luz. Esclarecer é retirar ao ser a sua resistência, porque a luz abre um horizonte e esvazia o espaço - entrega o ser a partir do nada. A mediação (característica da filosofia ocidental) só tem sentido se não se limitar a reduzir as distâncias.
Pois, como é que intermediários reduziriam os intervalos entre termos infinitamente distantes? Não surgirão eles também como intransponíveis entre as balizas, até ao infinito? É necessário que em algum lado se dê uma grande "traição" para que um ser exterior e estranho se entregue a intermediários. No que se refere às coisas, verifica-se uma rendição na sua conceptualização. Quanto ao homem, tal capitulação pode obter-se pelo terror que põe um homem livre sob a dominação de um outro. No que concerne às coisas, a tarefa da ontologia consiste em captar o indivíduo (que é o único a existir) não na sua individualidade, mas na sua generalidade (a única de que há ciência). A relação com o Outro só aí se cumpre através de um terceiro, que encontro em mim. O ideal da verdade socrática assenta, portanto, na suficiência essencial do Mesmo, na sua identificação de ipseidade, no seu egoísmo. A filosofia é uma egologia.
Levinas, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2000, pp 30 - 31.
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