segunda-feira, 11 de abril de 2016
" canalização "
Domino a infiltração que me perturba,
imagino o prazer da cama seca à espera de
algum canalizador a olhar obra futura com desdém,
há fuga de água, há ar a mais, é preciso calafetar a alma,
não vá sair de chofre o sopro que a sustém.
Tento consertar os canos,
esgotos de mim mesmo propagados pela casa,
o resto pouco importa, é o resultado dos anos.
Que é isso do poema feito no jogo da palavra barroca,
cultismo de circunstância sem lugar para
infiltrações ou para qualquer ratazana saída da toca
obstruindo a casa onde respiro e esqueço detritos
num banho de alfazema?
Não há canalizador que me valha,
estão todos ocupados com serviços importantes, urgentes até,
e eu que me arranje,
que escreva metáforas aos canos apodrecidos pelo tempo
onde sempre correu água turva por onde se esgueirou
o que sobra de mim, ao fim do dia,
não toda essa merda conspurcando enunciados, não,
antes aquela inventada para dar lugar a outra, que sobrou
por contraste, sacrifício, teimosia.
Como era bom agora uma esplanada junto ao mar,
ouvir outra água sem saber de nada, esquecer a tubagem,
tomar batidos de leite e nata com morango, sorver o café,
percorrer uma gaivota na praia com o olhar, sentir uma aragem,
pôr fim à porcaria dos poemas encharcados de quotidiano
até cheirar mal, e depois dizer "então, como é?
Que chatice! Que é que eu vou fazer,
quem é que me vem consertar o raio do cano?"
Está roto e não há quem o remende, quem o troque por outro
asséptico e novo para durar a eternidade, sem pruridos,
como se os canos não se gastassem, e as juntas,
as ligações estranhas que fazemos sem saber porquê,
sem saber que somos infiltrados e à nascença entupidos,
até dizer basta!, quero respirar, quero escrever o que me vem
à cabeça com todos os sentidos,
depois logo se vê.
Ferra. António A Palavra Passe. Porto: Campo das Letras Editores, 2006, pp. 27 - 28.
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