terça-feira, 4 de outubro de 2016




                     " Março 10, NY "


                        1.

Silêncio branco, sem pássaros.
Árvores ao sopro das nuvens
ferem o ritmo da paisagem.
Entre o que surge e o que parte,
a neve dissolve a rocha. E o som do vento,
vozes incertas
que gelam
nossas inúteis ações.
Um sinal (um disparo) afasta-nos da Ideia.
Desliza na direção do nada: o deserto
pressente já o tremor.


                        2.

Nossas vidas transformam-se noutras vidas,
inacabado brilho de cristal.
A frescura do orvalho
é já folha quebradiça.
Somos história? Não, mancha,
fumo
de impossível transcendência,
água entre os carvalhos. Enquanto
bebemos uma chávena de um amargo café
em que nos detemos, inclinados os rostos.


                        3.

Não história, apenas alento na procura
de reverdecidas ramas.
Choraste perdido o fulgor
e tive medo de no escuro ver
com gélidos olhos,
barca vazia num lago sem água.
Das tuas pupilas vi nascer o mar: claridade inefável.
Anos, túneis, torres eletrificadas
percorrerias
para encontrar minhas mãos.


                           4.

O medo é encontrar a própria semelhança.
Interpretar os sonhos
constitui o nosso pior pesadelo.
A quem representamos? Que parte do inseto
encerra em si tal veneno?
Cada estação, como cada palavra,
traz a sua morte
- ao de leve sugerida -
remanso
de festivas violetas. E o Logos?
Para que quero eu um Logos se o que busco
é
alojar a luz dentro d'outra luz?
Ali, para que se aninhe o escuro.


                            5.

Encontrar a outra parte do fogo,
a agulha no palheiro, olho
vislumbrando
a textura, solto o alinhavo
entrar
e sair, quase sem pegadas.
Angelina conseguiu-o na sua escrita
sob a espada de São Miguel - a céu aberto -
nas altas mansões de candeias apagadas.


                            6.

Refletida nos vidros, a ameixoeira,
caindo o outono,
gravidade e desejo, contradição
da natureza
regressando à imagem primeira:
e o cachorro, sua intensa ternura no prado,
à beira da floresta; a saliva
na língua da leoa, círculos de fogo
meus olhos. Existir é sempre casual.


                             7.

Sílabas com aroma de jasmim. Semeei palavras
em vasos cansados.
Raízes
tentando reviver. Que casa desabitada?
Às cinco o vazio do sacrifício
e em cima o galo, sinos;
húmido pasto, insetos entre folhas
e o grito da pega. Ecos
de Deus a vida. Morremos
muito abaixo do céu, medo
que nos submerge
na primeira e única origem.
Céu como um espelho, terra de sepulcro,
não há conclusão, não há um final. Fio
e textura,
a luz do fruto, fria, dentro de mim.


                                8.

Melhor ceder ao resplendor
do horizonte.
Sonho de Deus a vida, sem paz os deuses
que inventaram a palavra e a guerra.
O fogo nomeia. Com ele falamos
de luz, expressamos
o silêncio de luz.
O amanhecer desvela o primeiro raio
sobre o ocre acastanhado
do galo.
Deus, não sei onde está.


                             9.

Acaso não haverá medida para o tremor da alma?
Poder-se-á medir nossos sentires?
A luz progredia, irreversível.
O colibri alimenta-se da flor, nós
do desejo. Olho o céu em silêncio.
Um voo ocasional perturba o violeta da paisagem
para um sol que de súbito se afunda
sem ter tempo de perceber que antes ascendia.


                              10.

De raízes nos fala esta luz,
cujo fulgor se vai perdendo
no frio coração da água.
Oiço e não oiço, entro sem entrar
no outro lado de um mar
que se esconde
na direção do silêncio ou do abismo da noite.
Declina a lua de agosto,
voo de uma ave, 
tudo se aproxima. Realidade que não alcançam
nossas vidas.

                                                               Março 10, 2003
                                       Iniciam-se os bombardeamentos dos Estados Unidos sobre Bagdad.


Clariond, Jeannette L. Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio, Nº 1, setembro 2016. Fafe: Editora Labirinto, 2016, pp 44 - 48 ( Tradução de Victor Oliveira Mateus).
.
.