AQUI:
https://www.youtube.com/watch?v=Oa0GnHc9-2o&feature=share
Youtube: "Le paradoxe de l'écrivain M. Yourcenar sottotitolato "
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Creio que falar da condição do artista, e por artista entendo também o escritor, aquele que faz uma obra de arte, um quadro, um livro ou uma composição musical (... ) Diderot escreveu um ensaio - se não estou em erro - que se chama "O Paradoxo do Comediante", mas há também "um paradoxo do escritor" (...) e um paradoxo é que duas coisas ao mesmo tempo são verdadeiras e contraditórias entre si: uma é que o escritor deve ser profundamente "si-próprio", mas que deve também sair de "si-próprio", fazer tábua rasa de si próprio, as duas exigências que têm o aspeto de ser contraditórias, no seio de uma realidade que compreende todas as contradições, não o são.
A principal razão, creio, da má literatura é que o escritor (...) diz a si próprio: "eu penso qualquer coisa", "eu sinto qualquer coisa", "eu digo-me qualquer coisa", logo, isso será bom para um livro, ora, isso é falso por uma simples razão: será que ele pensa qualquer coisa? Que sente qualquer coisa? Que diz a si qualquer coisa? Ou será que o que fervilha no seu espírito são reflexões de poeira? De coisas que ele ouviu (...), de coisas que ele crê sentir, coisas em que crê crer? Então, isto quer dizer que estamos a anos-luz da realidade.
O primeiro dever do escritor julgo ser - antes de tudo - a atenção, uma enorme atenção ao que ele sente, ao que ele experiencía, uma atenção quase terapêutica, para não se enganar a si próprio... e uma imensa atenção ao universo que o cerca. Em escritos de filósofos do Tao (...) existe uma espécie de provérbio, de máxima (...): "Governar um grande império é a mesma coisa do que fritar um minúsculo peixe", isto quer dizer que ambos exigem uma atenção completa, um atento cuidado daqueles que os executam, direi o mesmo para um grande livro: escrever um grande livro será como fritar um prato de peixe ou de legumes, será colocar toda a atenção, todo o talento, toda a boa vontade de que se é capaz numa só ação. E isso eu acredito que é, em matéria de literatura ou em matéria de arte, a base de tudo. A atenção é uma qualidade excessivamente rara... desde que se faça trabalhos de psicologia oriental (...) onde se vê a relação do homem consigo próprio e a primeira virtude aconselhada é a atenção: estar atento ao que se faz, estar atento ao movimento dos seus músculos, estar atento ao seu olhar, ver exatamente o que acontece em nós e fora de nós.... e o escritor que escreve um livro utiliza milhões de anotações que fez - muitas até sem se aperceber que as fez -, mas que passaram através desta espécie de processador que é o seu cérebro e quanto mais um livro é rico (...) melhor vemos que o mínimo detalhe tem um valor de extrema realidade: o autor partiu de um pequeno facto, de uma pequena sensação que ele conheceu verdadeiramente...: a atenção é o primeiro dever do escritor! Agora... como alcançar esse nível de atenção? Penso que será interessante citar alguns fragmentos, que não se relacionam apenas com a arte de escrever, mas com todas as artes quaisquer que sejam e com todas as formas de vida, excertos que eu encontrei num texto de Caxemira, um texto de uma tribo de Caxemira [ pega num livro e começa a ler ] "(...) que um espírito centrado numa coisa não a larga tão cedo para se lançar na direção de outra coisa ", quer dizer que em todas as sensações, em todas as emoções, em todas as descrições de um facto há uma margem (...) é verdade que em todas as circunstâncias da vida as pessoas que pensam "comocionalmente" não veem essa margem que cada coisa comporta em si. [ Lendo outro fragmento relativo à tal tribo da Caxemira ] "Na ansiedade, no terror (...) nos turbilhões - é preciso notar que Montaigne diz algo semelhante -, quando superamos um precipício, quando se está em perigo, quando se sente uma viva curiosidade, nos momentos em que nos apercebemos, ou apaziguamos, o fim, a existência revela-se-nos", de novo este excerto sobre a passagem de uma sensação a outra, que é de tal modo importante, mas que o escritor "comocional" apaga sempre, e que é excessivamente sensível a uma espécie de mobilidade do detalhe que existe, de facto, em todos os grandes escritores.
Outra coisa que não se prende com a literatura, mas que se pode ligar a ela [ e volta à leitura dos fragmentos ] : " (...) pensar com intensidade o seu próprio corpo como desprovido de suporte ", quer dizer, nós cremo-nos firmemente implantados em qualquer coisa, mas nós - na realidade - não estamos fixados em absolutamente nada: os nossos caracteres, as nossas personagens, as coisas que descrevemos... é preciso não esquecer este elemento de instabilidade de base que existe sob a estabilidade! (...) quando eles [ a tribo ] dizem: "meditar sobre o universo como sobre um turbilhão" eles querem dizer o mesmo. Outra coisa [ e lê outra passagem ]: " prestai atenção ao desconhecido, ao inapreensível, ao vazio, a tudo o que jamais acederá à existência " e, com efeito, por detrás de cada situação, por detrás de cada ser, existem todas as virtualidades, todas as possibilidades nele... que ele não revelou ainda, que talvez nunca venha a revelar, mas que estão ali, que o enriquecem sem que ele o saiba, e isso é outra coisa que nós não devemos nunca descurar quando pensamos - nós romancistas - nas nossas personagens. [ Volta a ler ]: "Não fixar o pensamento", há pouco falei de fixar a atenção, sim, mas o pensamento, não, porque o pensamento é já uma opinião, trata-se que o espírito seja sem opinião para que possa refletir todas as coisas, Stendhal dizia, numa metáfora bizarra, mas que é muitas vezes utilizada no equivalente da pintura ultramoderna como a do pintor americano (??? ) e que é meu vizinho aqui, " o espírito é uma espécie de espelho que passeia pela estrada", um pouco surpreendente, mas o pintor americano, por exemplo, mostra as janelas dos autocarros refletindo os passantes e as outras janelas que passam [ volta a ler ] : " limitar o seu próprio si-próprio no modo de um firmamento ilimitado" , quer dizer que nós somos muito maiores do que nós, , o que não é, de modo algum, uma forma de orgulho... O escritor (...) cada vez que conclui um livro, diz: "Meu Deus, consegui escrever isto!" Ele experimenta o mesmo sentimento que se encontra na balada alemã, a do cavaleiro que atravessou o Lago Constança completamente gelado, à noite, sem se aperceber que era um lago e que cai, soluçando, do seu cavalo, quando se apercebe do que acabara de fazer; cada vez que o escritor - e posso dizer o artista (...) - termina uma obra ele tem a sensação que esteve preso longe de si e que regressa a um domínio que é o da sua vida e é aqui que eu acho que há uma nota essencialmente importante: o escritor deve viver! Alguém que diz: "Bem, vou retirar-me para escrever um livro" , esse livro será seguramente mau! Já veremos porquê! Ibsen diizia, maravilhosamente: "um escritor que recusa viver torna-se num mau escritor" (...) ele está privado de certos elementos vitais e é na linha desses elementos vitais que se trata de permanecer. Não só a vida presente, mas também a vida passada enforma um livro em muito da sua substância..... essa vida naquilo que o escritor diz, mas não como o público crê, não é necessariamente a história do escritor: depois de eu ter escrito a morte de Antínoo afogado no Nilo, várias pessoas vieram perguntar-me, com ar compadecido, se eu tinha tido amigos que se tinham afogado, mas não necessariamente, não é dessa maneira que as coisas se passam, aquilo de que se trata é de transferir tudo o que aprendemos da vida para dada personagem ou circunstâncias que descrevemos, porque as que não vivemos vemo-las sempre através de certas convenções e de certos preconceitos, é somente quando fazemos algo ou quando sofremos algo - o que muitas vezes é mais importante do que fazer - que aprendemos a ver como as coisas são. Enquanto um indivíduo não é rico, ele fala dos ricos como de uma espécie de monstros - que frequentemente até o são! - , mas sem saber exatamente o que significa a possibilidade para alguém de uma certa espera de viver como lhe apraz (...) Alguém que nunca foi pobre não conhece, de modo algum, a servidão da pobreza (...) a pobreza é para ele um estado quase místico, muito complicado, que é preciso atravessar para o conhecer e a mesma coisa para todos os estados... a doença também é um estado e aquele que nunca esteve doente é um monstro, dizia Tolstoi, seria - em todo o caso - um mau escritor, por outro lado aquele que poderá renunciar, que perdeu completamente a saúde é alguém que poderá escrever profundamente nessa direção e inscrever-se nessa onda vital, a tal ponto que as técnicas da psicologia oriental aconselham a alguém que esteja muito doente de se imaginar caminhando, de se imaginar subindo uma montanha, de se imaginar nadando, para não perder o contacto com a realidade corporal - e é esta utilização da vida pelo livro que é tão importante!
A vida oferece muito mais possibilidades do que aquelas que o escritor pode registar no seu livro, mas ele escolhe sempre através dessas possibilidades e a questão da escolha é extremamente misteriosa: porque é que um escritor escolhe um assunto em vez de outro? Porque há uma continuidade numa certa direção da sua obra através da diversidade? É difícil dizer e ninguém conseguiu explicar mesmo recuando às memórias ancestrais, aos genes, a certos sistemas metafísicos, o que quisermos.... que certas influências, certas impressões dominam certos seres e não dominam outros, é verdade na vida e é verdade na escrita, é isso que distingue a escrita de um Shakespeare ou a de um Tolstoi ou a de um Schopenhauer. Poder-se-ia dizer que as influências vinham dos livros lidos quando se é jovem, mas os psicólogos mais recentes não acreditam muito nessas influências da primeira juventude. Como é que se aborda a questão das influências dos outros escritores? Ela é muito sensível e, por vezes, incomodamente visível nas primeiras obras dos autores (...) quando se lê as primeiras obras de Flaubert percebe-se que ele imita os primeiros escritores "românticos negros" à maneira alemã, mas isso não dura muito, decanta-se rapidamente e Goethe disse - e muito bem - que na realidade tantas influências literárias e culturais que se exercem sobre um ser que ele mesmo é incapaz de distinguir umas das outras (...) e quanto mais um escritor é cultivado, quanto mais ele leu, mais ele sabe - se ele consegue levar a cabo essa tarefa de transformar em prestígio isso que sabe e adquirir uma espécie de vanidade da escrita, o que é bastante perigoso - se ele consegue fazer de todas essas cores misturadas uma espécie de cinzento sobre a qual ressalta a sua própria individualidade, a sua própria vida... eu não acredito nas influências nas obras dos grandes escritores, eles são assim únicos porque souberam tirar estranhamente das circunstâncias, dos factos e das emoções que foram as suas e é isso que faz com que sejam reconhecíveis logo numa primeira abordagem, nós não nos enganamos ante um verso de Victor Hugo ou ante um verso de Rimbaud e, para voltar à história das influências, sabe-se perfeitamente, porque todos os livros que Rimbaud leu entre os treze e os dezasseis anos, já que ele tinha uma biblioteca conscenciosa em Charleville que conservava as fichas, e vê-se perfeitamente como através de livros de viagens, como através dos romances populares que ele leu na época - a biblioteca não era muito rica - certas imagens do "bateau ivre" e, no entanto, o "bateau ivre" é Rimbaud, já que muitos outros alunos leram os mesmos livros de viagens, os mesmos romances populares e nenhum escreveu: " - Est-ce en ces nuits sans fonds que tu dors et t'exiles,/ Million d'oiseaux d'or, ô future vigueur?", para alcançar esta aliança de imagens é necessário que tenham sido as emoções de Rimbaud e não de qualquer outra pessoa, pode então dizer-se que todo o grande escritor é inimitável, o próprio Victor Hugo dizia: "imitar Shakespeare será tão insensato, como imitar Racine seria estupidez" e em escritor sobre o qual me tenho debruçado ultimamente, pois fiz o seu elogio na Academia Francesa - e que contrariamente às asneiras que a imprensa americana tem dito tenho por ele um enorme respeito - que é Roger Caillois, dizia também ele que cada escritor era inimitável e que se produzia uma espécie de "concreção" como a das pedras submetidas à ação da água ou à ação do fogo e dizia - muito bem! - imitar Racine é uma aventura, para Voltaire - que, aliás, já ninguém lê - uma tragédia é já literatura... e para cada escritor cada livro é uma aventura e forçosamente porque não se tem duas vezes a mesma perspetiva (...) a vida é de tal modo diversificada, por exemplo, e falando de mim própria que é de quem me lembro melhor, Adriano é a história de um homem inteligente, é este homem inteligente e dono do mundo ... e eu escrevi o livro logo após a guerra de 45, na época em que havia a ingenuidade de acreditar que um homem ou uma organização inteligente, como as Nações Unidas, poderiam ainda melhorar o mundo e houvesse um suporte para a cultura, dez anos mais tarde escrevi "L'oeuvre au noir" é de novo a história de um homem inteligente, mas este homem inteligente encontra-se numa roupagem dividida em dois por uma espécie de cortina de ferro, que no seu tempo era o catolicismo e o protestantismo, que nos nossos dias é uma cortina de ferro comunista/capitalista, e os perseguidos desconfiam de toda a gente, já que não estão de acordo com ninguém, ora, ele tem a sensação de que é vencido pelo número, seja o que for que aconteça e, por mais inteligentes que sejam as proposições que ele defende, elas jamais serão aceites (...) é quase o mesmo homem, embora não tenha o mesmo temperamento (...) mas na sua inteligência para compreender e dominar as coisas é o mesmo, com a diferença que um é imperador e dono do mundo e o outro é um médico pobre que anda de cidade em cidade. Mas falei até agora da psicologia da composição, da moral da composição, dos esforços do escritor de se impor para compreender e para voltar a sua atenção na direção do que observa, quer seja a si próprio quer seja aos outros, agora há uma questão também muito importante que é artesanal: quando somos músicos aprendemos, antes de tudo, a tocar uma escala musical e quando somos pintores devemos aprender o sistema das cores, como servirmo-nos delas ou como essas cores se combinam, como se deverão opor harmoniosamente e que cor convém para este ou aquele trabalho, a mesma coisa para o escritor. O escritor trabalha com um instrumento que é a sua língua e aí toda a espécie de dificuldades também o esperam: se ele quer ser um escritor puro, fiel à sua língua tal como a recebeu dos seus professores e dos seus mestres há uma grande hipótese de lhe faltar a liberdade, Montaigne - que é um dos grandes escritores franceses, muito maior do que aquilo que habitualmente imaginamos - dizia que o gascão por onde vamos é o francês por onde não se pode ir, quer isto dizer que devemos aprender as palavras populares, as palavras locais, o que quer que seja, para exprimirmos o nosso pensamento e, até um certo ponto, cada escritor é muito mais livre relativamente à sua língua, é um reconstrutor ou um enriquecedor da sua língua, muitos são ousados no que diz respeito às relações entre palavras, termos, mesmo quanto à sintaxe do que um escritor - como hei de dizer? - "comocional". Por outro lado, há duas coisas a que um escritor deve ser absolutamente sensível: é necessário que um escritor seja absolutamente fiel à realidade, se ele faz falar um imperador, que pertence à tradição clássica, é preciso que o seu estilo tenha qualquer coisa da tradição clássica, se ele faz falar um operário ele tem de se precaver contra todas as palavras com mais de quatro sílabas, aliás, Roger Caillois - de quem falei há pouco- dizia: "considero que todas as palavras que têm mais do que quatro sílabas são absolutamente um anátema, é preciso serem vigiadas "(...) , se o escritor faz ainda falar um homem de origem muito simples e popular é preciso fixar-se naquilo que é bem concreto: nas exatas recordações da sua profissão, das ocupações da sua vida diária e jamais deixá-lo cair em concepções e termos intelectuais que ele não poderá possuir... e no modo de fazer falar um intelectual é preciso precavermo-nos dessa tagarelice intelectual onde quase sempre as palavras se transformam em assentos desagradáveis ou em moedas num museu, onde não se vê bem o que está escrito, já que à força do uso se acabou perdendo todo o seu sentido, isto é, portanto, uma fidelidade ao objeto através da literatura, através da escrita... e há também uma outra coisa, e aqui acredito que muitos dos nossos contemporâneos cometem - num certo sentido - um crime: é preciso ser-se claro: o escritor que acrescenta obscuridades à vida que - valha-nos Deus! - é já tão obscura e às questões e problemas da inteligência que em si já são incompreensíveis, criando obscuridades com palavras para embelezar, para tornar interessante, para encenar diversões, para fingir armar qualquer coisa de novo, está completamente fora da sua vocação de escritor, pois quando escrevemos é para sermos compreendidos e, por mais obscura ou por mais abstrusa que seja a matéria, importa então ter uma clareza quase infantil e aí - creio - há um enorme erro motivado por um certo snobismo que existe num grande número dos escritores contemporâneos, erro que desencoraja completamente o leitor: o leitor lê uma página, duas páginas que não compreende, então, diz para si: " meu Deus, olhem, paciência, deixemos isto!"... e eu fiquei sempre impressionada por algo que certo dia me disse Jean Cocteau: um escritor cuidadoso que escreveu uma carta à sua porteira, para a prevenir que não viesse na semana seguinte, verificou os pontos nos is, as vírgulas, os acentos, para que a porteira o compreendesse bem, é exatamente isto que convém manter no estilo: que tudo seja feito para que as pessoas compreendam. E, por fim, há ainda a importância assídua do trabalho, é incómodo dizer, mas a maior parte dos escritores - como talvez a maior parte das pessoas que se ocupam da vidraria ou dos que fazem objetos trabalhados em couro - incham com a importância daquilo que fazem (...) mas consagrando os seus esforços - ou parte dos seus esforços - ao seu trabalho é preciso não esquecer (...) que o mundo passa bem sem nós para continuar a rodar e no dia em que perdemos esse sentimentos (...) dizemos: " sim, é assim mesmo!, isto interessa-me, isto interessa a um certo número de pessoas - esperemos! -, mas a imensidão do mundo não se alterará e eu viverei com uma total liberdade no interior deste limite, dos meus modestos limites... e a honestidade artesanal e a honestidade humana é surpreendida aí: crispa-se ou incha-se!, e o mesmo para o valor das obras, para a duração das obras, há pessoas que nos dizem: "o que é que pensa? Pensa que as suas obras são demasiado importantes? Que elas irão permanecer?" etc., eu creio que isso não tem importância alguma numa época em que andamos preocupados com todo um matagal de coisas sabermos se as obras durarão ou não. E num livro de Boulgakov, "Le Maître er Marguerite", livro que acho bastante bom e que é uma espécie de cavalgada fantástica a fazer-nos lembrar a "Fantástica" de Berlioz, o personagem principal tinha uma paixão pelo seu livro, tinha-lhe dedicado a sua vida, no momento de morrer - bem, ele estava morto, mas não sabia! - o seu espírito, que estava com ele, o génio, o anjo mau que afinal era um anjo bom, diz-lhe: "Queima isso tudo!", e então ele queima aqueles papéis aos quais tinha dado tanta importância, aos quais tinha consagrado a sua vida e, ao fazê-lo, exclama: "Ah, que belo fogo!" É o valor dos livrinhos! Ele não salvou a essência da sua escrita, mas salvou a essência da sua liberdade, do seu entusiasmo, a essência da sua vida.
A vida oferece muito mais possibilidades do que aquelas que o escritor pode registar no seu livro, mas ele escolhe sempre através dessas possibilidades e a questão da escolha é extremamente misteriosa: porque é que um escritor escolhe um assunto em vez de outro? Porque há uma continuidade numa certa direção da sua obra através da diversidade? É difícil dizer e ninguém conseguiu explicar mesmo recuando às memórias ancestrais, aos genes, a certos sistemas metafísicos, o que quisermos.... que certas influências, certas impressões dominam certos seres e não dominam outros, é verdade na vida e é verdade na escrita, é isso que distingue a escrita de um Shakespeare ou a de um Tolstoi ou a de um Schopenhauer. Poder-se-ia dizer que as influências vinham dos livros lidos quando se é jovem, mas os psicólogos mais recentes não acreditam muito nessas influências da primeira juventude. Como é que se aborda a questão das influências dos outros escritores? Ela é muito sensível e, por vezes, incomodamente visível nas primeiras obras dos autores (...) quando se lê as primeiras obras de Flaubert percebe-se que ele imita os primeiros escritores "românticos negros" à maneira alemã, mas isso não dura muito, decanta-se rapidamente e Goethe disse - e muito bem - que na realidade tantas influências literárias e culturais que se exercem sobre um ser que ele mesmo é incapaz de distinguir umas das outras (...) e quanto mais um escritor é cultivado, quanto mais ele leu, mais ele sabe - se ele consegue levar a cabo essa tarefa de transformar em prestígio isso que sabe e adquirir uma espécie de vanidade da escrita, o que é bastante perigoso - se ele consegue fazer de todas essas cores misturadas uma espécie de cinzento sobre a qual ressalta a sua própria individualidade, a sua própria vida... eu não acredito nas influências nas obras dos grandes escritores, eles são assim únicos porque souberam tirar estranhamente das circunstâncias, dos factos e das emoções que foram as suas e é isso que faz com que sejam reconhecíveis logo numa primeira abordagem, nós não nos enganamos ante um verso de Victor Hugo ou ante um verso de Rimbaud e, para voltar à história das influências, sabe-se perfeitamente, porque todos os livros que Rimbaud leu entre os treze e os dezasseis anos, já que ele tinha uma biblioteca conscenciosa em Charleville que conservava as fichas, e vê-se perfeitamente como através de livros de viagens, como através dos romances populares que ele leu na época - a biblioteca não era muito rica - certas imagens do "bateau ivre" e, no entanto, o "bateau ivre" é Rimbaud, já que muitos outros alunos leram os mesmos livros de viagens, os mesmos romances populares e nenhum escreveu: " - Est-ce en ces nuits sans fonds que tu dors et t'exiles,/ Million d'oiseaux d'or, ô future vigueur?", para alcançar esta aliança de imagens é necessário que tenham sido as emoções de Rimbaud e não de qualquer outra pessoa, pode então dizer-se que todo o grande escritor é inimitável, o próprio Victor Hugo dizia: "imitar Shakespeare será tão insensato, como imitar Racine seria estupidez" e em escritor sobre o qual me tenho debruçado ultimamente, pois fiz o seu elogio na Academia Francesa - e que contrariamente às asneiras que a imprensa americana tem dito tenho por ele um enorme respeito - que é Roger Caillois, dizia também ele que cada escritor era inimitável e que se produzia uma espécie de "concreção" como a das pedras submetidas à ação da água ou à ação do fogo e dizia - muito bem! - imitar Racine é uma aventura, para Voltaire - que, aliás, já ninguém lê - uma tragédia é já literatura... e para cada escritor cada livro é uma aventura e forçosamente porque não se tem duas vezes a mesma perspetiva (...) a vida é de tal modo diversificada, por exemplo, e falando de mim própria que é de quem me lembro melhor, Adriano é a história de um homem inteligente, é este homem inteligente e dono do mundo ... e eu escrevi o livro logo após a guerra de 45, na época em que havia a ingenuidade de acreditar que um homem ou uma organização inteligente, como as Nações Unidas, poderiam ainda melhorar o mundo e houvesse um suporte para a cultura, dez anos mais tarde escrevi "L'oeuvre au noir" é de novo a história de um homem inteligente, mas este homem inteligente encontra-se numa roupagem dividida em dois por uma espécie de cortina de ferro, que no seu tempo era o catolicismo e o protestantismo, que nos nossos dias é uma cortina de ferro comunista/capitalista, e os perseguidos desconfiam de toda a gente, já que não estão de acordo com ninguém, ora, ele tem a sensação de que é vencido pelo número, seja o que for que aconteça e, por mais inteligentes que sejam as proposições que ele defende, elas jamais serão aceites (...) é quase o mesmo homem, embora não tenha o mesmo temperamento (...) mas na sua inteligência para compreender e dominar as coisas é o mesmo, com a diferença que um é imperador e dono do mundo e o outro é um médico pobre que anda de cidade em cidade. Mas falei até agora da psicologia da composição, da moral da composição, dos esforços do escritor de se impor para compreender e para voltar a sua atenção na direção do que observa, quer seja a si próprio quer seja aos outros, agora há uma questão também muito importante que é artesanal: quando somos músicos aprendemos, antes de tudo, a tocar uma escala musical e quando somos pintores devemos aprender o sistema das cores, como servirmo-nos delas ou como essas cores se combinam, como se deverão opor harmoniosamente e que cor convém para este ou aquele trabalho, a mesma coisa para o escritor. O escritor trabalha com um instrumento que é a sua língua e aí toda a espécie de dificuldades também o esperam: se ele quer ser um escritor puro, fiel à sua língua tal como a recebeu dos seus professores e dos seus mestres há uma grande hipótese de lhe faltar a liberdade, Montaigne - que é um dos grandes escritores franceses, muito maior do que aquilo que habitualmente imaginamos - dizia que o gascão por onde vamos é o francês por onde não se pode ir, quer isto dizer que devemos aprender as palavras populares, as palavras locais, o que quer que seja, para exprimirmos o nosso pensamento e, até um certo ponto, cada escritor é muito mais livre relativamente à sua língua, é um reconstrutor ou um enriquecedor da sua língua, muitos são ousados no que diz respeito às relações entre palavras, termos, mesmo quanto à sintaxe do que um escritor - como hei de dizer? - "comocional". Por outro lado, há duas coisas a que um escritor deve ser absolutamente sensível: é necessário que um escritor seja absolutamente fiel à realidade, se ele faz falar um imperador, que pertence à tradição clássica, é preciso que o seu estilo tenha qualquer coisa da tradição clássica, se ele faz falar um operário ele tem de se precaver contra todas as palavras com mais de quatro sílabas, aliás, Roger Caillois - de quem falei há pouco- dizia: "considero que todas as palavras que têm mais do que quatro sílabas são absolutamente um anátema, é preciso serem vigiadas "(...) , se o escritor faz ainda falar um homem de origem muito simples e popular é preciso fixar-se naquilo que é bem concreto: nas exatas recordações da sua profissão, das ocupações da sua vida diária e jamais deixá-lo cair em concepções e termos intelectuais que ele não poderá possuir... e no modo de fazer falar um intelectual é preciso precavermo-nos dessa tagarelice intelectual onde quase sempre as palavras se transformam em assentos desagradáveis ou em moedas num museu, onde não se vê bem o que está escrito, já que à força do uso se acabou perdendo todo o seu sentido, isto é, portanto, uma fidelidade ao objeto através da literatura, através da escrita... e há também uma outra coisa, e aqui acredito que muitos dos nossos contemporâneos cometem - num certo sentido - um crime: é preciso ser-se claro: o escritor que acrescenta obscuridades à vida que - valha-nos Deus! - é já tão obscura e às questões e problemas da inteligência que em si já são incompreensíveis, criando obscuridades com palavras para embelezar, para tornar interessante, para encenar diversões, para fingir armar qualquer coisa de novo, está completamente fora da sua vocação de escritor, pois quando escrevemos é para sermos compreendidos e, por mais obscura ou por mais abstrusa que seja a matéria, importa então ter uma clareza quase infantil e aí - creio - há um enorme erro motivado por um certo snobismo que existe num grande número dos escritores contemporâneos, erro que desencoraja completamente o leitor: o leitor lê uma página, duas páginas que não compreende, então, diz para si: " meu Deus, olhem, paciência, deixemos isto!"... e eu fiquei sempre impressionada por algo que certo dia me disse Jean Cocteau: um escritor cuidadoso que escreveu uma carta à sua porteira, para a prevenir que não viesse na semana seguinte, verificou os pontos nos is, as vírgulas, os acentos, para que a porteira o compreendesse bem, é exatamente isto que convém manter no estilo: que tudo seja feito para que as pessoas compreendam. E, por fim, há ainda a importância assídua do trabalho, é incómodo dizer, mas a maior parte dos escritores - como talvez a maior parte das pessoas que se ocupam da vidraria ou dos que fazem objetos trabalhados em couro - incham com a importância daquilo que fazem (...) mas consagrando os seus esforços - ou parte dos seus esforços - ao seu trabalho é preciso não esquecer (...) que o mundo passa bem sem nós para continuar a rodar e no dia em que perdemos esse sentimentos (...) dizemos: " sim, é assim mesmo!, isto interessa-me, isto interessa a um certo número de pessoas - esperemos! -, mas a imensidão do mundo não se alterará e eu viverei com uma total liberdade no interior deste limite, dos meus modestos limites... e a honestidade artesanal e a honestidade humana é surpreendida aí: crispa-se ou incha-se!, e o mesmo para o valor das obras, para a duração das obras, há pessoas que nos dizem: "o que é que pensa? Pensa que as suas obras são demasiado importantes? Que elas irão permanecer?" etc., eu creio que isso não tem importância alguma numa época em que andamos preocupados com todo um matagal de coisas sabermos se as obras durarão ou não. E num livro de Boulgakov, "Le Maître er Marguerite", livro que acho bastante bom e que é uma espécie de cavalgada fantástica a fazer-nos lembrar a "Fantástica" de Berlioz, o personagem principal tinha uma paixão pelo seu livro, tinha-lhe dedicado a sua vida, no momento de morrer - bem, ele estava morto, mas não sabia! - o seu espírito, que estava com ele, o génio, o anjo mau que afinal era um anjo bom, diz-lhe: "Queima isso tudo!", e então ele queima aqueles papéis aos quais tinha dado tanta importância, aos quais tinha consagrado a sua vida e, ao fazê-lo, exclama: "Ah, que belo fogo!" É o valor dos livrinhos! Ele não salvou a essência da sua escrita, mas salvou a essência da sua liberdade, do seu entusiasmo, a essência da sua vida.
© Marquerite Yourcenar e programa "Propos et Confidences" (3/4/1983) da Televisão Canadiana..
© Tradução, a partir do monólogo oral (cerca de 30 mns), de Victor Oliveira Mateus.
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