( As "Lettres Portugaises", inicialmente atribuidas a Mariana Alcoforado (22/4/1640-28/7/1723)) e hoje a Gabriel Joseph de Lavergne Guilleragues (1628-1684), são um conjunto de cinco cartas, que, tendo aparecido em França, rapidamente se espalhou a sua fama e acabaram mesmo por influenciar alguns Românticos como Sainte-Beuve e Saint Simon. As "Cartas" são um dos textos mais belos da epistolografia europeia e Stendhal dar-lhes-ia mesmo um lugar de destaque no seu "De l'Amour". Desde que surgiram e até hoje muito se tem escrito à volta deste texto - exemplo: nos últimos anos da Ditadura, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, publicam uma espécie de paráfrase à obra do séc. XVII: "Novas Cartas Portuguesas", livro que a censura e a polícia política logo apreendeu. Das "Lettres" aconselho a tradução para português feita por Eugénio de Andrade.)
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1ª CARTA
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Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!,
foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que
esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável
à crueldade da ausência que o causa. Há de então este afastamento, para o
qual a minha dor, por mais subtil que seja, não encontrou nome bastante
lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos onde já vi
tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de alegria,
que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há? Ai!,
os meus estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes restam,
e chorar é o único uso que faço deles, desde que soube que te havias decidido
a um afastamento tão insuportável que me matará em pouco tempo.
Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de que és a única causa, já vou
tendo afeição. Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em
sacrificar-ta. Mil vezes ao dia os meus suspiros vão ao teu encontro,
procuram-te por toda a parte e, em troca de tanto desassossego, só me trazem
sinais da minha má sorte, que cruelmente não me consente qualquer engano e
me diz a todo o momento: Cessa, pobre Mariana, cessa de te mortificar em
vão, e de procurar um amante que não voltarás a ver, que atravessou mares
para te fugir, que está em França rodeado de prazeres, que não pensa um só
instante nas tuas mágoas, que dispensa todo este arrebatamento e nem sequer
sabe agradecer-to. Mas não, não me resolvo, a pensar tão mal de ti e estou por
demais empenhada em te justificar. Nem quero imaginar que me esqueceste.
Não sou já bem desgraçada sem o tormento de falsas suspeitas? E porque hei
de eu procurar esquecer todo o desvelo com que me manifestavas o teu amor?
Tão deslumbrada fiquei com os teus cuidados, que bem ingrata seria se não te
quisesse com desvario igual ao que me levava a minha paixão, quando me
davas provas da tua.
Como é possível que a lembrança de momentos tão belos se tenha tornado
tão cruel? E que, contra a sua natureza, sirva agora só para me torturar o
coração? Ai!, a tua última carta reduziu-o a um estado bem singular: bateu de
tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar. Fiquei tão prostrada
de comoção que durante mais de três horas todos os meus sentidos me
abandonaram: recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que para ti a
não posso guardar. Enfim, voltei, contra vontade, a ver a luz: agradava-me
sentir que morria de amor, e, além do mais, era um alívio não voltar a ser
posta em frente do meu coração despedaçado pela dor da tua ausência.
Depois deste acidente tenho padecido muito, mas como poderei deixar de
sofrer enquanto não te vir? Suporto contudo o meu mal sem me queixar,
porque me vem de ti. É então isto que me dás em troca de tanto amor? Mas
não importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem for,
e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais ninguém. Poderias
contentar te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez
encontrasses mais beleza (houve um tempo, no entanto, em que me dizias que
eu era muito bonita), mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais
não é nada.
Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, nem me voltes a pedir que me
lembre de ti. Eu não te posso esquecer, e não esqueço também a esperança
que me deste de vires passar algum tempo comigo. Ai!, porque não queres
passar a vida inteira ao pé de mim? Se me fosse possível sair deste malfadado
convento, não esperaria em Portugal pelo cumprimento da tua promessa: iria
eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir te, e amar-te em
toda a parte. Não me atrevo a acreditar que isso possa acontecer; tal esperança
por certo me daria algum consolo, mas não quero alimentá-la, pois só à minha
dor me devo entregar. Porém, quando meu irmão me permitiu que te
escrevesse, confesso que surpreendi em mim um alvoroço de alegria, que
suspendeu por momentos o desespero em que vivo. Suplico-te que me digas
porque teimaste em me desvairar assim, sabendo, como sabias, que terminavas
por me abandonar? Porque te empenhaste tanto em me desgraçar? Porque
não me deixaste em sossego no meu convento? Em que é que te ofendi? Mas
perdoa-me; não te culpo de nada. Não me encontro em estado de pensar em
vingança, e acuso somente o rigor do meu destino. Ao separar-nos, julgo que
nos fez o mais temível dos males, embora não possa afastar o meu coração do
teu; o amor, bem mais forte, uniu-os para toda a vida. E tu, se tens algum
interesse por mim, escreve-me amiúde. Bem mereço o cuidado de me falares
do teu coração e da tua vida; e sobretudo vem ver-me.
Adeus. Não posso separar-me deste papel que irá ter às tuas mãos. Quem me
dera a mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem que isso não é possível!
Adeus; não posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda.
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