(Nota: Yeshua, Jesus; Mia, Maria, uma das irmãs de Lázaro; Miriam de Magdala, Maria Madalena.)
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Será possível que uma pequena parte do Senhor - exatamente do tamanho de um homem - morra de cada vez que um de nós morre? Tudo o que vejo e ouço parece querer que eu acredite nisso. Porque, se não for o caso, como pode o Todo-Poderoso sentir compaixão?
Miriam de Magdala está de pé por trás de Yeshua, tremendo de frio, o manto de lã enrodilhado aos pés. Talvez, penso, não se atreva a postar-se diante dele, porque sabe que desmaiará se lhe vir o rosto.
Mas engano-me.
O minúsculo passo que logo dá para a sua esquerda, e a forma como mede a distância que a separa de Yeshua, mostram-me que se colocou entre ele e a luz do sol envolto em nuvens, de forma a que a sombra da sua cabeça e do seu peito incida diretamente sobre as pernas e os pés de Yeshua.
Ele sentirá que Miriam está com ele, penso, e sei nessa altura que ela tenciona seguir a rota do sol à medida que for descendo no horizonte. Na linguagem sagrada das sombras, Miriam está a dizer-lhe: Ficarei contigo o tempo que for necessário e, no fim, contigo cairei nos braços da morte.
E assim fico a saber - demasiado tarde, talvez - que ela o ama exatamente como eu.
Ajoelho-me com o meu filho. Mia vai postar-se do outro lado.
Observo os olhos fechados de Yeshua e imagino os meus lábios a pousarem primeiro num e depois no outro. Pego-lhe nas mãos e aperto-as com força, depois largo-as e desenho com as palmas das minhas a curva oblíqua das suas ancas, e beijo-lhe o topo da cabeça, o pescoço e os lábios, e ele cheira a madeira e a papiro, como sempre cheirou. Sinto-lhe o peso do sexo na mão e abraço-me às suas pernas. Acaricio-lhe a face com a minha e roço-lhe os pelos da barba com os meus.
Faço tudo isto porque preciso de saber onde ele começa e termina, porque só conhecendo essas coisas desaparecerão as fronteiras entre nós, e eu serei o que observa e o que é observado, o amante e o amado - e a morte não lhe porá fim, porque ele viverá dentro de mim para sempre.
Lembrar-me-ei de tudo o que aconteceu neste dia, prometo-lhe, embora ainda não saiba porquê.
Tiro as sandálias e desembaraço-me de túnica. Mia tenta impedir-me.
- Não podes ficar nu aqui - segreda-me, mas eu digo-lhe que é a única maneira.
- Vou libertar-me de tudo o que me prender à terra - digo.
Juntamente com as roupas, tento soltar-me dos medos, sonhos, penas e esperanças, porque Yeshua sempre me disse que o Senhor nos acolhe nus.
A mãe dele compreende a singela beleza de tirar tudo o que só sirva para me manter afastado do filho, porque me chama pelo nome quando me ajoelho de novo e, entre lágrimas, faz um aceno de cabeça e desce a mão pelo peito, mostrando-me que compreende os meus motivos. E, então, tira também ela as sandálias e o lenço da cabeça.
Poderia algum de nós mandar a pessoa que mais ama para o túmulo - nua e indefesa - sem desejar acompanhá-la?
Zimler, Richard. O Evangelho segundo Lázaro. Porto: Porto Editora: 2016, pp 370-372.
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