(Nota: segue abaixo o meu texto de Apresentação do livro nele referido , que decorreu na Sociedade Guilherme Cossoul - Avª D. Carlos I em Lisboa - no dia 26 de junho de 2017, este texto seria depois publicado na "Revista Caliban" a 26/6/2017).
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VASOS COMUNICANTES – ANTÓNIO RAMOS ROSA E
GISELA RAMOS ROSA: DISSEMELHANÇAS E CONVERGÊNCIAS.
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Transcrevo aqui, à laia de preâmbulo, um
excerto de uma obra sobre Maurice Blanchot que diz assim: “A experiência do
comentador junta-se aqui à do escritor: algo existe para ser dito e que não o
foi ainda, mas aquilo que não foi ainda dito, nunca o virá a ser.
Encontramo-nos, portanto, nesse espaço onde, como o relembra M. Blanchot,
Aquiles jamais alcançará a tartaruga. A expedição do crítico, apesar de aparentemente
visar um objetivo definido, se tem algo de cabotagem no lugar onde a obra
criativa se ergue enquanto aventura, partilha também com esta última do seu
carácter de itinerância. Assim como o escritor, o comentador soçobra sempre com
a terra prometida à vista.” (Françoise Collin in “Maurice Blanchot et la
question de l’écriture”. Paris: Gallimard, 1986, p 11, tradução minha). Esta
citação tem aqui uma dupla função: atenua e desculpabiliza as falhas e
imperfeições das notas que aqui avançarei e, por outro lado, refere um autor
que António Ramos Rosa gostava tanto de reler e de citar e que, de um modo ou
de outro, acabaria de preceder também essas inquirições/viagens que o poeta
português sempre retomava nos seus poemas, nas suas traduções, nos seus ensaios.
O livro que nos ocupa aqui neste texto
revela-nos, através do seu título, que estamos perante um recetáculo onde duas
vozes poéticas se derramam. Uma leitura apressada poder-nos-ia levar a pensar
que essas duas vozes poéticas circulam no território da identidade pura, logo,
da cópia, da repetição passiva, da contrafação. Ora, o que uma leitura mais
atenta faz ressaltar, é que estamos perante duas vozes, que, no seu diálogo e
partilha comum, ou apesar deles, não se despem de aspetos que no seu dizer são
essenciais e lhes concedem uma diferenciação recíproca, aliás, Maria Teresa
Dias Furtado, no Prefácio deste livro, salienta já, para além “do entendimento
poético e humano”, a questão “da proximidade na diversidade” (Cf. p 10).
O aspeto do diálogo e da partilha é enfatizado várias
vezes por ambos os poetas: “O que eu fiz de mais puro/como uma estrela no
ar/(…)/ Foi este livro contigo/que nasceu como nasceu” (A.R.R., 218/1/ 1-2;
A.R.R., 218/2/1-2, a técnica de citação
será sempre esta: iniciais do poeta, números de página, de estrofe, de versos);
“Contigo a meu lado eu estou contigo” (A.R.R., 214/1/1); “Em teus olhos
reais/alcanço o horizonte de um sol” (G.R.R., 196/1/1-2); “percorro as ruas da
cidade em busca de um lugar/ sugerido pela flor que me acolhe junto a ti”
(G.R.R., 24/1/3-4), todavia, este relacional se apresenta fortes convergências
quanto à intencionalidade e à extensão, já quanto à intensão surgem fortes
dissemelhanças: a atitude de Gisela Ramos Rosa é sempre a da deferência e do
comedimento ante a portentosa figura do interlocutor, isto apesar de uma
dedicatória que ousa (Cf. p 28), já António Ramos Rosa não se inibe de, num
verso, referir a consanguinidade entre ambos, bem como de recorrer a processos
de intitulação (Cf. p 76) e de nomeação submetendo, varias vezes, a este último
procedimentos formais como jogos de palavras, assonâncias e rimas internas (Cf.
p 72, p 214, p 218).
Ao nível dos referidos procedimentos formais
verificamos uma forte semelhança entre ambos os poetas com a tónica colocada
numa certa linearidade discursiva (Cf. G.R.R. 52-53/1-4/1-25) e, por vezes, a
sujeição da estrutura poemática a sequências alicerçadas em anáforas (Cf. p
112, 124) ou em jogos de palavras encadeadas e/ou emparelhadas (Cf. p 26). Não
é possível também distinguir os poetas quanto à dimensão dos poemas e dos
versos, já que ambos usam indiferenciadamente poemas longos e curtos, versos
extensos e breves. Será, contudo, no léxico utilizado que aparecerá, embora de
modo muito subtil, as variáveis indiciadoras de que para além do extremado
afeto e da intensa partilha relacional, poética e sapiencial, dois universos
poéticos distintos espreitam, embora respeitosamente se resguardem, já que o
momento é de construção no idêntico e não de afirmação do distinto. Ilustre-se
isto com os seguintes versos: “Pressinto o som das cores/ quando sinto o jardim
que se abre a meu olhar/ e nele descubro esboços de Deus/ na natureza” (G.R.R.,
204/1/15-18), não só o termo Deus nunca é referido por A.R.R., como o poeta jamais
subordina a Natureza a qualquer entidade que, a nível ontológico, lhe seja
hierarquicamente superior, aliás, e apesar de um ou outro título de livro e de
um ou outro título de poema, A.R.R. – à imagem de Heidegger, que citava com
frequência – colocava a sua escrita aquém da pergunta pela divindade: “O poema
dirige-se para o segredo do oriente/ interrogando as coisas imediatas e
simples/(…) situando o texto formulado/ numa galáxia informulada” (A.R.R.,
182/2/ 1-7), o fundamental – e fundante – no poeta era a linguagem e, mais
especificamente, a linguagem poética e a construção do poema no seu diálogo
sempre retomado com o mundo natural e humano. A própria consanguinidade acima
referida está subordinada aos elementos do mundo natural: “Minha estranha estrela
consanguínea/ em quantas estrelas brilhas/ pela janela do teu sangue/ és filha
do vento e de um grão de terra/ e da febre de um instante de alegria/ sobre uma
onda do mar” (p 122). Mas as dissemelhanças ao nível semântico parecem escapar
ao diálogo poético, sem que os próprios autores pareçam disso aperceber-se: por
duas vezes G.R.R. usa a palavra “templo” (Cf. p 44, p 84) e a sua incursão no
pictural, embora seguindo de perto A.R.R. (as árvores, as pedras, os rios, o
branco, o azul, o verde…), por uma vez se distancia dele: “o poema destina-se
ao lilás de um encontro” (G.R.R., 96/1/2) através de uma cor que tem uma
simbologia própria em dadas formas de religiosidade. Assim, se A.R.R. mantém à
distância a problemática teológica, optando por uma sacralização do mundo
natural, algo situada entre as várias formas de panteísmo e as visões
mítico-mágicas (seria interessante, por exemplo, que alguém fizesse um estudo
intertextual das poesias da António Ramos Rosa e de Dora Ferreira da Silva,
poeta brasileira que não me consta que ele tivesse lido), já Gisela Ramos Rosa
tende para uma atitude mais radical; dito de outra forma: se em A.R.R. há uma
comunhão com o mundo natural que é da ordem do sagrado, em G.R.R. tende-se, não
para uma comunhão, mas para uma fusão (ou um apagamento em?) com esse mesmo
mundo: “vou pelos reflexos das imagens que me chamam/ e a lei não encobre a
claridade do dia” (G.R.R., 128/2/1-2); “Senti as raízes do infinito/ nesse arco
onde o tempo tece a passagem/ e as correntes abrem os caminhos” (G.R.R.,
62/1/1-3).
Para concluir, direi que é este
entrecruzamento de convergências e dissemelhanças, que acaba conduzindo os dois
intervenientes deste diálogo poético a uma outra posição relacionada agora com
o conceito de “aberto”, que surge à saciedade neste livro e que não apresenta
qualquer conotação teológica, como em autores declaradamente cristãos, veja-se,
por exemplo, a posição do filósofo e teólogo ortodoxo Jean-Yves Leloup (Cf.
“L’enracinement et l’Ouverture”.Paris: Albin Michel, 1995) onde o encontro e o
diálogo com o outro e o diferente são tão-só um meio para “abrir” uma via mais
larga e mais luminosa para a divindade. Em “Vasos comunicantes” o “aberto”
surge invariavelmente associado à apreensão do outro nas suas múltiplas formas:
“O Aberto não esconde o que tu vês/ nem o que tu não podes ver/ tu vês e
respiras com todos os teus sentidos” (A.R.R., 68/1/1-3: Cf. também páginas 77,
132, 140, 166 e 198), em última instância o aberto é o que, de desvelamento em
desvelamento, me faz aceder à linguagem e faculta a construção do poema: “ na
casa o silêncio é um lugar que conquista/ as portas que se abrem para o
corredor/ e ao fundo entro na portada que me leva/ à espiral da linguagem à
suspensão do tempo” (G.R.R., 140/4/1-4), porque, acima de tudo, o que vinca
esta obra é o entendimento da poesia e do poema (“O poema é uma teia/de que
aranha de que areia/ que se desfaz e se tece/ e se inflecte como uma carícia”
A.R.R., 118/1/1-5) e uma profunda comunhão da intimidade, que, vendo bem, é
igualmente poesia (“ O teu sorriso é sempre um rosto/ que desenha o nosso
encontro” G.R.R., 132/3/1-2).
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Mateus, Victor Oliveira. Revista Caliban, 26 de junho de 2017.
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