quinta-feira, 5 de maio de 2016



    " Ascensão ao desespero "


Em tempos deixava a miséria
pousar sobre o meu ombro,
o aconchego duma velha amiga
que voltou de férias para ficar
sem previsão de tempo para a estadia.
E eu sorria porque era só isso que sabia,
recebê-la de braços abertos.

Nada me contenta;
Sair deste movimento de ascensão ao desespero
é sair do sítio no qual morei tanto tempo
mas que nunca chamei casa.
Deixar a voz morrer na garganta
por nunca poder ter palavras minhas,
arrancadas num ciclo interminável
de dar e perder tudo.

Enquanto nadava contra a maré
mas me fundia com ela
numa constante indignação conformada
para um abismo cada vez maior dentro de mim,
puxavas-me com tanta força que tenho medo
que me largues a mão e não me apanhes,
como todos os que juraram mas partiram.


   Cunha, Ana. Emergente, Novos Poetas Lusófonos. Lisboa: Livros de Ontem, 2016, p. 23 (Coordenação de Samuel Pimenta).
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