sexta-feira, 19 de agosto de 2016


   
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                  "  UMA VOZ SOLITÁRIA "

  
                                ) 1 (

Solidão.
          Couraça.
                     Sou um teu sobrevivente.

O outro que restava
morreu lá longe
quando viu os pássaros acasalarem.

Solidão.
          Amarra.
                    Sou o teu salvo-conduto.

Vou, transido de medo,
por essas veredas
onde apenas parece ouvir-se
como imploram, no vento,
as brisas que insistem em amar-se.


                         )  2  (

Acompanho-me.
Faço-me outras gentes.
Vou-me repartindo.

Dou-me medo neste só
e procuro-me, sabendo
que não há forma
de que as mesas, por exemplo,
me sejam companhia.

Nem que o amor o seja.
Só este corpo inaudito em que sou
como carne
a que este sangue acrescenta o que sou
como vinho.


                        )  3  (

Passo a noite no cais
junto ao cão de três cabeças.
Caminhamos firmes
rumo à estação seguinte
onde ainda permanecem as folhas
do último outono.


                       )  4 (

Vale mais estar só do que muito só.
Demora mais o só a sair de sua ausência
do que uma agulha a atravessar os poros de uma palha.


                       ) 5 (

Nos dias de hoje até o céu
anda com uma solidão de tal modo azul
que se dispersa.


                        ) 6 (

Aqui me reconheço: sou como barro
que quis ser vasilha e acabou testemunho
de um ser em mim feito postigo
nesta portinhola a que me amarro

Aqui sou outra coisa que tanto temo.
Sou uma solidão que grita desenfreada,
que vibra como o mar enquanto te apequenas
em plena tempestade de um céu ameaçador.

Vejo-me como vala de uma esquina
enredada ao longo da espinha
para iludir a emoção.

E no meio deste frio que é a vida
através da minha sombra ainda indefinida
cresce-me este outro eu no coração.


                         ) 7 (

Tudo: as malas. Os corpos.
As tapeçarias. A areia. Os risos.
O condor. O jaguar. Os vasos com sede.
A sede dos castanheiros.
A macieira fustigada pelo inverno.
Tudo: até o mosquito que nos perturba
o sono, tudo se vai, definitivamente,
para a teia sem saída da solidão.


                        )  8  (

Que o solitário abra o mar de Moisés
e se afogue
nesse acontecimento.
Que nem sequer tenha tempo de olhar para trás
porque aí se converteria em estátua de sal
e estaria mais só do que nunca.
Mesmo que por pombas estivesse acompanhado.


                       ) 9 (

Virá a morte
        e a solidão far-se-á
        o menos profundo dos mistérios.



  Troncoso, Xavier Oquendo. Cintilações: Revista de Poesia e Ensaio, Nº 1 setembro 2016.. Fafe: Editora Labirinto, 2016, pp 91 - 94  ( Tradução de Victor Oliveira Mateus).
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