segunda-feira, 2 de abril de 2018


um dia chamei por ti e
não vieste

estava sentada     como agora
neste velho café de campo de ourique
olhando quem vende sonhos nas feiras
à sombra da maria da fonte e dos velhos
que morrem devagar ao ritmo
das cartas lançadas
sobre os bancos de pedra

e as minhas mãos apertaram com tanta força
as mãos que não havia
que o sangue se espalhou pela toalha
enquanto lá fora um carro travava
porque alguém     tu     quem sabe
se atravessara de repente
no meio da rua

morreu
perguntei
mas os criados não me responderam
os olhos presos no vidro do copo
esmagado entre os meus dedos    e
tomando nota da despesa

mas depressa entendi que
não valia a pena esperar por ti neste lugar
embora todas as árvores tivessem um dia
aprendido os nossos nomes
dando sombra ao que
possivelmente
só elas soubessem que
andaria à deriva pelas nossas vidas

hoje
possivelmente
já nem recordas o caminho
e     de resto     o café está mudado
os velhos falam de futebol
de umas mesas para as outras
e as mulheres vêem nos espelhos
rostos de velhas que desconhecem
e têm     subitamente     muito frio

virá
pergunto eu hoje
nem sei porquê     nem a quem
mas também agora os criados
não me responderam
os olhos mais uma vez colados à mesa
onde em tempos o sangue
escorria dos meus dedos


  Vieira, Alice. Olha-me como quem chove. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2018, pp 17-18.
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