sábado, 17 de dezembro de 2016


   Est-ce que ta douce maman va venir te voir?, ria-se. Tinha-me ouvido falar mal dela inúmeras vezes e parecia-lhe incrível que viesse visitar-me a Paris. Veio, de facto, mas evitei que eles se encontrassem. Pouco tempo depois; Michel começou a recriminar-me por não o ter apresentado à minha mãe (tiveste vergonha de mim), quando ele, pelo contrário, além de me levar a Lecreux para conhecer a dele, tinha-me dado guarida durante meses, tinha-me alimentado e vestido, tinha-me dado até l'argent de poche para gastar no bar, no cinema, ou para comprar roupa e tabaco. Nunca o disse exatamente assim, mas eu pressentia por detrás dessas censuras a reivindicação dos direitos que a minha dívida para com ele lhe concedia. Não era um homem mesquinho, mas as suas insinuações destilavam mesquinhez. Quando lhe disse que não suportava cenas de ciúmes, replicou: não consigo evitar, é uma coisa hereditária;(...) O alcoolismo e os ciúmes são hereditários, como a sífilis, disse-me. Fico informado, Michel, retorqui com um gesto de cansaço. Mas os ciúmes do teu pai resultavam do facto de a tua mãe ter trabalhado como puta para os invasores da pátria, e eu trabalho como desenhador numa empresa de decoração. Não é exatamente a mesma coisa. Disse-lho de muito mau modo e arrependi-me assim que pronunciei tais palavras, e nessa mesma noite fui ao bar dos marroquinos para lhe pedir desculpa. Não o encontrei, nem em casa. Sentia-me culpado. Michel jamais me trairia, era um cão fiel (igual a si próprio até ao limite do tédio). Era o mesmo petit pays en devenu prolétaire que me tinha acolhido em sua casa, e os seus modos, a sua exigência de exclusividade, e sua vontade de me possuir por inteiro e que eu o possuísse em iguais condições foram assim desde o primeiro dia. No início, esse ardor lisonjeou-me, deu-me segurança, devolveu-me um certo orgulho e salvou-me do meu próprio desamparo, mas agora já não era assim.
   A primeira vez. Noite de sexta-feira. (...) Nem sequer me ocorrera que eu pudesse interessar àquele tipo corpulento e desalinhado que fumava Gitanes como um louco, mas passámos na cama o resto do serão de sexta-feira. Fumámos, bebemos, e eu abriguei-me num corpo cuja solidez parecia capaz de suportar qualquer prova de resistência. Ele pôs a tocar no gira-discos as canções mais sentimentais de Brassens: Par le petit garçon qui meurt près de sa mère. O disco girava e eu abraçava o homem e sentia vontade de chorar, como se fosse eu a criança moribunda e ele me lamentasse muito.


 Chirbes, Rafael. Paris-Austerlitz. Porto: Assírio & Alvim, 2016, pp 51-53 (Tradução de Rui Pires Cabral).
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