terça-feira, 24 de janeiro de 2017

   O rei abordava ainda o suposto perigo que a construção das linhas férreas representava para a segurança nacional, um alerta lançado, em 1853, por um dos mais destacados intelectuais do período, Alexandre Herculano. As relações entre este e o rei não eram tão boas quanto usualmente se julga. Um tecnocrata feito a pulso, D. Pedro tinha pouca paciência para os devaneios medievalistas do historiador. Em novo, admirara o homem que seu pai escolhera para bibliotecário do paço, mas pouco a pouco, as ideias destes dois homens foram divergindo, (...) Os temperamentos de Herculano e de D. Pedro eram demasiado diferentes para se poderem dar bem. Herculano acabaria no exílio interior, coisa que, estivesse vivo, o rei teria certamente desaprovado.
   Uma prova de que as relações entre ambos tinham azedado, ainda antes do final da década de 1850, é-nos dada pela hesitação de D. Pedro em convidar Herculano para reger a disciplina de História no Curso Superior de Letras. Eis o que, em apontamento privado, escrevia: "A. Herculano deixa-se dominar a tal ponto pela ideia da existência de grandes perigos nas tendências invasoras da cleresia e da aristocracia que não sei se seria possível obrigá-lo a não fazer uso da arma do ensino para a defesa da sua causa". Tendo em conta a reputação do historiador junto das elites, acrescentava: "É difícil deixar de oferecer a A. Herculano a cadeira de História, pelo menos apalpá-lo, para não lhe dar a satisfação da recusa (...) Pareceria, pelo menos, uma vingança aos olhos dos que, não sei por quê, acreditam (...) diametralmente opostas as ideias de A. Herculano e as minhas." (...) Eis outra passagem relativa à meditação do rei sobre o assunto: "É provável que A. Herculano não aceite, não quadra com os seus hábitos a disciplina a que teria de sujeitar-se, nem lhe deixam os seus trabalhos habituais tempo para traduzi-los no ensino da mocidade, para o qual ele não tem a paciência benevolente e a indulgência de que ela precisa. Chefe de escola, ou, pelo menos, pretendendo sê-lo, o magistério seria, porventura, para ele uma propaganda e ele sabe que as multidões não se dominam senão a troco de concessões do amor próprio (...) Na falta de A. Herculano, não me lembra outro nome que o de Rebelo da Silva." De facto, após a previsível recusa daquele, seria este a ocupar o cargo. Data ainda desta época a carta que Herculano escreveu a Filipe de Sousa, na qual se queixava do facto de o rei poder "vir com insistências pueris" junto dele, acrescentando estar "pouco disposto para o aturar". A amizade entre os dois desaparecera.


 Mónica, Maria Filomena. D. Pedro V. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, pp  176-177.
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