terça-feira, 9 de janeiro de 2018



            23. DO FINAL

Sou o homem das alamedas,
que anda devagar coberto pelas árvores
com a memória arrancada da cabeça.
Não me bastam as velas das igrejas
para clarear o instante destas horas
no meu relógio de pulso parado.
Rua imensa para preencher o silêncio
costurado no corpo do meu final.
A poesia é a asfixia
que me faz morrer aos poucos.
Corre este rio sobre meus pés cortados
por folhas amarelas.
Tenho uma igreja fechada dentro de mim
com altares desertos.
Percorro os corredores dos campos
como se a colher trigo
vigiado por aves tristes.
O poema se perde
como a vida que se vai aos pedaços
no antigo vaso ausente da sala.
Não estou comigo
nem permaneço com minha alma.
Leve é o nada
em que desapareço
e dou tudo por perdido.
As palavras mortas me habitam a boca
com sílabas que sangram.
O guarda-chuva vazio
me cobre inteiro,
mas ainda vejo o que me cerca.
Perdi meu chapéu
com pensamentos inúteis.
Agora só quero
me esconder do que resta de mim.


  Faria, Álvaro Alves. 23 elegias da mão esquerda. Coimbra: Palimage, 2017, pp 34-35.
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