Com Detergente, obra que tem como epígrafes um verso de Cesário Verde e outro de Ruy Belo, Ruy Ventura instala-se deliberadamente numa zona de interseção dos géneros literários: estamos perante uma dramaturgia onde duas personagens vão dialogando? Perante dois monólogos justapostos onde duas vozes poéticas se fazem ouvir, embora tangenciando-se aqui e ali? Ou estamos perante um livro de poesia onde o dialógico ocorre em socorro de uma mensagem de cariz transcendentalista e de uma acentuada função poética. Pessoalmente, inclino-me para a última interpretação, daí ter lido (com muito agrado) esta obra à luz da poética de alguns dos grandes dramaturgos franceses da primeira metade do século passado, como por exemplo Paul Claudel e Henry de Montherlant, bem como da lucidez desesperada de um Pierre Drieu la Rochelle.
A obra inicia-se com duas personagens (figuras? Vozes poéticas?) que se fazem ouvir junto a um edifício em construção (a simbólica do livro é algo a considerar!), enquanto ao fundo se ouve o Quatuor pour la Fin du Temps de Olivier Messiaen. Também não é acidental a escolha da música de Messiaen: um dos maiores compositores do século XX, compositor esse cuja profunda religiosidade atravessou toda a sua vida e toda a sua obra. Eis um excerto do livro:
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Raul:
(...) Há quem vença a tempestade e descubra na ausência da imagem um motor. Há quem veja na luz intensa do farol uma resposta e, na resposta, um íman que leva à construção de um abrigo e ao confronto com as marcas da itinerância e da subida. Temo contudo o vazio que resulta da remoção do entulho. Não dispenso o domicílio quando dispo o território e a lembrança. Preciso de mirantes e de labirintos, mas recuso ver e, sobretudo, perder-me.
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João:
Dias virão em que os passos serão pagos: não poderemos atravessar se não pusermos os joelhos em terra e venerarmos o espírito sem acento, essa inversão do fogo e da ventura. Dias virão em que os olhos pagarão tributo para fitarem o céu e o oceano. Dias virão em que a entrada na serra e nos seus limites obrigará ao pagamento da portagem. (...) Há quem escreva versos, mas dispense a escassez, o trabalho, a descoberta. Há quem vá filosofando, mas rejeite o amor e a sabedoria. Há quem pinte, molde, filme, dance e represente, mas feche os olhos às imagens que nos desafiam, como lava no dia do juízo. Há quem escolha (e esconda) de dois senhores o mais rendoso - e assim afunde (e se afunde) num terreno movediço todos os corpos e, com eles, a alegria, a dor e a graça, transformando-nos em fósseis liquefeitos, em crude que um dia arderá nessa fogueira onde os autos-sem-fé do nosso tempo vão colocando a voz e a incerteza.
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Raul:
Temos de sorrir (dizem). Temos de suportar, ainda que a dissolução nos transforme em vermes, em roedores que voam ou rastejam, corroendo as estradas com excrementos. Somos vítimas ou agentes do veneno? Prefiro não dizer. Prefiro não fazer Se o fizesse ou dissesse, cortaria a minha mão ou a minha língua (...) Desvio os olhos do risco. Descubro o engano e a cobardia. (...) No entulho hei-de encontrar o braço (detergente) - e nesse lume sobreviverei.
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Ventura, Ruy. Detergente. S/c.: Editora Licorne, 2016, pp 16-17.
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