sexta-feira, 12 de janeiro de 2018
Hoje não me dá jeito morrer
Hoje não me dá jeito morrer. Hoje
tenho uma fantasia ao lume, do género
andar no parque de mão dada; e semeei
palavras graves, ando sempre à cata
dos rebentos. Hoje tenho de olhar
para uma pedra. E de definir dois pontos
cardeais a um pássaro. E de rebolar
numa encosta quando eu era pequena.
Hoje não tenho tempo para morrer, estou
a pensar aprender tango, inclinar-me
a trinta graus nos braços de um galã
com a perninha em tagatés àqueles
que me vêem. Hoje trinquei chocolate
e viajei, como se o chocolate me fizesse
estrelada e imortal, o horizonte chão
daquela trincadela impede obviamente
a morte neste dia. Hoje não dá jeito,
tenho de ir de viagem amanhã,
ou a daqui a um mês, para conhecer
os sonhos que andam aí e nunca poisam,
sempre guardados num grosso calendário.
Tenho da amar um gato, e uma pessoa, e um quadro
que me diz que há muitos outros, e uma árvore
com quem há vários anos tive um caso. Hoje
a Música apareceu-me com uma ponta de ironia
e perguntou: "É hoje?" E eu disse-lhe que sim,
porque não estou junto da morte.
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Pires, Isabel Cristina. folhas - letras & outros ofícios 15. Aveiro: Grupo Poético de Aveiro, 2017, p 58.
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