sábado, 25 de março de 2017


   Ao longo dos tempos, as aves têm fascinado os escritores das mais diversas civilizações. Nalguns casos, a literatura popularizou de tal forma um pássaro que este ficou para sempre associado a um poema, lenda ou narrativa. Poderá um leitor culto contemplar um rouxinol sem evocar o seu canto melancólico em "Ode to a Nightingale" (1820), de John Keats (1795-1821)? Ou assistir ao esvoaçar sinistro de um corvo, e não pensar no poema "The Raven" (1845), o mais célebre de Edgar Allan Poe (1809-1849)? Ou deleitar-se com a majestosidade serena de um cisne e não tecer semelhanças com "The Wild Swans at Coole" (1919), do Prémio Nobel William Butler Yeats (1865-1949)?
   No texto "Com as Aves, desde Idanha", incluído em As Afluentes do Silêncio"  (1968), Eugénio de Andrade (1923-2005) partilha com o leitor a paixão pelos pássaros:
"Não admira que alguns dos mais belos poemas de sempre tenham sido escritos para aves. Dou exemplo: a cotovia de Shelley, o rouxinol de Keats, o corvo de Edgar Allan Poe, o albatroz de Baudelaire, os cisnes de Mallarmé e de Yeats, o melro de Stevens, o pardal de William Carlos Williams, Às vezes é só um verso que fica a pairar no nosso espírito, como esse chamamento do tordo através da névoa, do Eliot; ou o rumor de asas desses pássaros de Juan Ramón Jiménez, que "cantam e cantam" no mais invisível dos ramos; mas como enriquecem a nossa vida... (Andrade, 1997:190)"
   À galeria de autores mencionados poderia facilmente acrescentar-se o nome de Eugénio. Mais do que qualquer outro poeta português, este é o escritor das aves, "que tantas vezes fazem o ninho/ nos (...) versos" (Andrade, 2005: 538). Pela sua obra esvoaçam bandos de andorinhas, melros, cotovias, rouxinóis, gaivotas, etc. De ramo em ramo, de canto em canto, de poema em poema, estes pássaros personificam qualidades, muitas vezes nobres, e assumem diversos cambiantes de pureza e desejo (Ferraz, 2004: 21). O autor lê, na migração das aves, um reflexo da efemeridade (Andrade, 2005: 417, 523), ou um desafio à morte, pela renovação da natureza (Andrade, 2005: 76, 561) (...)
   O poeta de Póvoa de Atalaia serve-se destas aves para evocar, intertextualmente, pássaros idênticos, que cantam nos textos dos autores que estima e reconhece como influência literária.. (...)
   William Shakespeare constitui um autor incontornável não apenas da literatura isabelina, mas também das letras universais, graças ao seu génio e proficuidade. O poeta, dramaturgo e actor legou-nos três extensos poemas, com destaque para The Rape of Lucrece (1594); cento e cinquenta e quatro sonetos, entre os quais o célebre "Sonnet 18 (Shall I compare thee to a Summer's day?)", uma das mais belas composições de amor algum dia escritas; e trinta e oito peças, onde se incluem Romeo and Juliet (1594-5), Hamlet (1600-1) e The Tempest (c. 1611), populares tanto entre a elite como junto do vulgo.(...)
   A importância de Shakespeare e este seu apreço pelas aves não passariam despercebidos a um escritor culto como Eugénio (...)
   Trata-se de uma alusão óbvia à primeira grande tragédia de Shakespeare, conhecida em todas as culturas, acerca do amor proibido entre os filhos de duas famílias rivais: os Capuletos e os Montagues. O passo em que a cotovia canta ocorre no final de primeira noite de casados entre os jovens, decorrida no quarto de Julieta (...) Neste excerto da tragédia, o canto da cotovia anuncia simultaneamente a madrugada e o fim da noite de amor dos apaixonados(...) Este afastamento entristece, como é óbvio, a jovem, que associa o piar da ave à separação: "Some say the lark makes sweet division;/ This doth not so, for she divideth us" (Shakespeare, 2007: 717). (...)
   Trata-se de uma das mais célebres e melancólicas cenas de despedida da literatura universal, marcada pela tensão entre os amantes que desejam permanecer nos braços um do outro, mas sabem que é preciso partir; e permeada pela multiplicidade de significados contraditórios da aurora: tempo de início e de perda; de frescura e do fim da virgindade de Julieta; de consumação do amor e do adeus (Carey, 1997: 37).


  Mancelos, João de. O Marulhar de Versos Antigos, A Intertextualidade em Eugénio de Andrade. Lisboa: Edições Colibri, 2009, pp 15-20.
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