domingo, 19 de março de 2017


              "Os cantos ao dicionário"


Revolvi os cantos ao dicionário: só cotão e pó
as palavras largam sempre tanto lixo...

Procurava uma palavra que te desse...
guardara-a para ti, quando viesses,
mas não sei já onde a pousei    talvez
entre uma metáfora
morta    e um oxímoro gasto, muito velho,
dizendo qualquer coisa como esta: "a palavra
que mais diz é aquela que calamos
no silêncio", ou outra coisa, até, mais banal ainda.

Da metáfora, não encontrei nem sobras,
devo tê-la perdido, por aí, no discurso vulgar do dia a dia.

Acontece-me, acontece-me muito, esquecer-me de palavras
no fundo da carteira,
desfeitas entre bilhetes de metro,    sob o peso dos dias,
das chaves do carro.

Passo tanto tempo a perder palavras como o tempo que gasto em procurá-las.
Depois... o cansaço de as inventar de novo, de as soletrar de novo,
tropeçando em consoantes    nas vogais...

Tão difícil, voltar a dizer as palavras que perdemos.
Mentindo-lhes sentidos novamente...

Por isso percorria à pressa o dicionário, hoje
para procurar uma outra palavra que te desse,
ainda antes que chegasses... de manhã.

A palavra que te queria dar, perdia-a,
não há tempo agora de a reescrever assim à pressa...
manhã alta, já, deves estar mesmo aí, a aparecer...

Revolvi o dicionário: tanto pó na esquina das palavras.
Sempre tudo em desalinho, nem uma sílaba consigo ter em seu lugar.
Trago a língua tão desarrumada, tanto desleixo, sempre tudo tão sem jeito
E tu, aí, quase à beira de chegar.

Tirei uma mão cheia de palavras ao acaso
concha, lago, ternura, um pedaço arrancado à bruta da palavra amor.

Mas tu chegaste-me, entretanto, com um perfeito ramo de frases feitas
fingiste até nem reparar na confusão e
deitámo-nos assim mesmo na minha palavra ainda    por dizer.


 Duarte, Rita Taborda. Roturas e ligamentos. Lisboa: Abysmo, 2016, pp 36-37.
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