terça-feira, 14 de março de 2017


         "Liberdades"


Temos liberdade para comprar
com um quarto de ordenado
um pequeno saco de comida

Também podemos reunir
há liberdade, para procurar
salas por toda esta cidade
e desistir

Temos liberdade de escrever
e os jornais nas mãos
de quem não quer saber

Também falar se pode
porque não cantar, dizer poesia
mas a rádio, a televisão
estão nas mãos de quem

Temos liberdade de aprender e ler
mas um livro custa mais
que um dia de salário

Temos tantas, tantas liberdades
mas os muros cercam-nos
e crescem de silêncio armado.


  Chinita, Ivone. Outra versão da casa. Lisboa: Edições Base, 1980, p  57.
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Nota - este livro de Ivone Chinta apresenta um tipo de Poesia, que, herdeira direta do neo-realismo, surgia já nos últimos tempos da Ditadura, mas granjeou  depois enorme destaque sobretudo na década de 70: uma escrita cuja tónica era colocada no sentido e cujo olhar - irónico e denunciatório - era colocado no sócio-económico e no cultural. Este livro estrutura-se em torno do sentir de um eu-poético, que, pelos condicionalismos focados, desembocará  na frustração e no desencanto do que afinal não aconteceu. Convém acrescentar que este tipo de poesia, que, na minha opinião, teve o seu ponto alto em José Gomes Ferreira, José Carlos Ary dos Santos e Daniel Filipe, sofreu igualmente incursões poéticas de outros poetas, que depois enveredaram por outras linhas estéticas, é o caso de Natália Correia e de Sophia de Melo Breyner.
Postaremos aqui dois poemas em que se mostra e denuncia a hipocrisia do conceito vigente de liberdade, bem como o modo como a educação e a aprendizagem inculcam nos homens (e não nas mulheres!) o medo de expressar as emoções e os afetos para com os seus iguais.
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