segunda-feira, 27 de março de 2017


   Neste passo (W. 1982:815), Whitman compraz-se com o canto simples da cotovia, duas ou três notas soltas e alegres, avivando uma manhã no término do Inverno - tal como Eugénio aprecia a música do pisco, e abre a janela para melhor escutá-lo. Ao mesmo tempo, o escritor norte-americano admira o voo quase silencioso da ave, que vai saltitando de estaca em estaca, ao longo de uma vedação de madeira. Todo o texto realça a candura do pássaro e celebra a euforia de viver e de cantar, mesmo num dia frio. Esta entrada de diário enleia também pelo ar de registo rápido, captura de um momento que passaria despercebido a quem não tivesse uma sensibilidade poética e, portanto, atenta aos pequenos milagres do quotidiano. Coube ao acaso e ao talento de Whitman trazê-lo para o papel e, assim, imortalizar aquela manhã de dezasseis de Março de 1878.
   Outros aspectos ligam o texto de Eugénio a Whitman: por exemplo, logo na primeira frase do poema em prosa, surge uma referência a Peter Doyle. Para compreender capazmente o texto, o leitor deve saber quem foi este indivíduo e a importância que deteve na esfera afectiva de Whitman. O poeta norte-americano conheceu Doyle por mero acaso, numa noite fria de Dezembro de 1865. Regressava a casa, na linha Washington-Georgetown, quando entabulou conversa com o conductor do eléctrico, Doyle, na altura um jovem de dezoito anos. Whitman ficou de tal modo fascinado pelas suas ideias e beleza física que acabou por não se apear e, em vez disso, fez-lhe companhia na viagem de retorno à central dos transportes, em Anacostia (Oliver, 2006: 278-279).
   Aparentemente, os dois homens detinham poucos aspectos em comum: Whitman era uma figura já importante das letras norte-americanas, enquanto Doyle possuía uma educação básica; o bardo de Brooklyn tinha mais do dobro da idade do jovem; o primeiro era um pacifista, o segundo combatera no exército confederado, durante a sangrenta Guerra Civil (1861-1865), que opusera o Norte ao Sul esclavagista. Houve, por certo, desentendimentos e atritos entre ambos, como registaram os biógrafos: Whitman achava desagradável, por exemplo, que Doyle gostasse demasiado de mulheres, e entristecia-se por notar o pouco apreço que reservava à poesia (Oliver, 2006: 278-279).
   Contudo, dando razão à sabedoria popular - que afirma que "os opostos se atraem"-, estabeleceu-se entre ambos um sólido afecto, talvez de natureza homossexual (não há qualquer prova concreta disso). Por várias vezes, Doyle referiu-se ao bardo como "affectionate father and comrade", ao passo que Whitman o tratava por "beloved male friend", "darling son" ou ainda "the one I love" (Oliver, 2006: 278). Ao longo de vinte e sete anos, Doyle cuidou do seu companheiro, com desvelo, até à morte deste, em 1892, ficando para sempre associado à figura do poeta.


  Mancelos, João de. O Marulhar de Versos Antigos, A Intertextualidade em Eugénio de Andrade. Lisboa: Edições Colibri, 2009, pp 35-36.
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