sábado, 11 de novembro de 2017



SEI DISSO, O POEMA É INÚTIL, APESAR DE ESCREVER
POESIA. Mas nem por isso me sinto substancialmente
melhor. Casado, pai de três filhos, netos exemplares, faço
tudo com o esmero do funcionário de estado. Director de
repartição. Não sou, note-se, um funcionário cansado.
Tenho músculos prontos para em cada manhã levantar
os netos, essas crianças que navegam no meu sangue e
acordam em sonhos distantes do mundo real em que me
encontro. Ponho na minha cara o sorriso mais feliz que
consigo. Sei que a minha mulher não é a amazona que
já foi e desejei lá muito atrás. Era uma puta formidável,
hoje é uma mulher doméstica, domesticada, uma san-
ta maternal, de olhar barroco, terno, adormecido - oh
puta de vida esta! Tenho músculos prontos para a guer-
ra, mas querem-me lento, ensonado, empregado, ma-
tando o tempo antes que ele me mate. Sou exemplar: no
futuro irão visitar-me numa qualquer cela de zoológico
para verem como despachava, carimbava, organizava a
minha vida anónima e vazia. Sou um animal enjaulado.
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  Cortez, António Carlos. Corvos Cobras Chacais. Lisboa: Editora Gato-Bravo, 2017, p 57.
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