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Alguns apontamentos em torno d’ O EVANGELHO SEGUNDO LÁZARO de Richard Zimler
Quem não pode morrer
arranque a
lápide
levante e ande
Até quando?
Até onde?
Edmar Monteiro Filho, Lázaro
A vida e obra de Jesus Cristo não têm sido
temas apelativos para o romance português contemporâneo. Se o cinema ocidental
tem visto no assunto matéria inesgotável para as suas abordagens (Pasolini,
Scorsese, Zeffirelli, Gibson, etc.), o mesmo acontecendo com a música dita
erudita (Bach, Liszt, Messiaen, etc.), já o romance luso fica-se por duas meras
incursões na história sagrada: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991) de José Saramago e “Os Últimos Dias de
Pôncio de Pilatos” (2011) de Paula de Sousa Lima. Se outros motivos não
existissem, o facto de nos encontrarmos perante um território literariamente
inóspito, já seria de louvar a temeridade com que Richard Zimler se lança na
construção da sua narrativa. Sem nos esquecermos que a relação da História com
a Cultura tem sido uma das dominantes na ficção de Zimler, urge, no entanto,
acrescentar que em O Evangelho segundo
Lázaro há uma vertente psicologista – fundada quer numa sistemática
introspeção do narrador, quer numa análise do relacional – que, tomando
igualmente a dianteira, forma com os aspetos históricos e culturais uma tríade
que, não só dota a estrutura narrativa de coerência e sistematicidade, como
apresenta a tese central do livro com uma razoabilidade que incita a reflexão e
o questionamento.
Este romance de Zimler integra-se num estilo
realista alicerçado no histórico, no cultural e no sócio-ideológico, contudo,
este realismo é constantemente atravessado por momentos de intersubjetivismo e
de intrasubjetivismo, que o autor assinala a itálico. Convém acrescentar que
este psicologismo nada tem a ver com as exaustivas análises do mundo interior
levadas a cabo por Proust no seu emblemático romance; em Zimler os excertos em
itálico mantêm-se presos ao imediatismo do instante vivenciado (Cf. p 25) ou
são puras conjeturas em torno do pensamento ou do monólogo interior do outro
(Cf. p 52, p 70, p 332). É este aspeto estilístico, bem como a escorreita
articulação da intriga e o modo de tratar o tempo narrativo, que dotam O Evangelho segundo Lázaro de uma
tessitura sólida e de uma fruição agradável e enriquecedora. Relativamente à
questão do tempo narrativo, Richard Zimler demarca-se do romance fragmentado e
do articulado emparelhamento dos planos narrativos, optando – de modo exímio e
coerente – por uma linearidade diegética constantemente transpassada por
analepses (Cf. p 83), elipses (Cf. p 75), resumos (Cf. p 402), prolepses (Cf. p
17). Também no que diz respeito aos aspetos psicológicos já referidos é
importante considerar a forma rigorosa como são desenhados atitudes, modelos
comportamentais e, sobretudo, as personalidades das personagens como por
exemplo as de Jesus, Marta e Anás, o anterior sumo sacerdote, cujas ações
aparecem no livro com uma inventariação de pormenores digna de um tratado
científico.
O
Evangelho segundo Lázaro apresenta um prólogo, à guisa de advertência, para
que o pergaminho que vai ser exposto não possa ser roubado, vendido,
desfigurado ou queimado (p 9). Após este Conselho
amigo, Lázaro lança-se na sua versão da vida de Jesus, tomando como início
da narração a história da sua própria ressurreição (pp 13-31), mas sem esquecer
de referir o recetor do pergaminho – Yaphiel, o seu neto vivendo em Alexandria
-, bem como o tempo histórico e o espaço geográfico da narração. Um dos aspetos
mais interessantes deste livro é a forma como se entrecruza a preocupação de
rigor de Lázaro com as zonas de sombra que o autor incute no discurso do
narrador – exemplo: Lázaro, durante o tempo em que esteve morto não vislumbrou
quaisquer sinais de uma qualquer transcendência, o que, obviamente, o deveria
direcionar para um ateísmo convicto (na página 271 fala-se mesmo da sua perda
da fé!), todavia, várias são as passagens do livro em que ele invoca o Senhor
(Cf. p 415); outro exemplo: Lázaro não fundamenta de forma suficientemente
clara a forma como entende o regresso de Jesus – aqui e ali – após a sua crucificação,
se por vezes levanta a possibilidade de o vir a reencontrar “ quer na sua
própria pele, quer na pele de outro homem ou mulher” (p 439), posição esta que
tangencia a teoria platónica da transmigração da alma, outras vezes parece querer substituir o conceito de aparição pelo de visão (p 381-384, p 440), seguindo de perto a sistematização operada
por Ratzinger relativamente a investigações teológicas que o precederam. A
questão da ressurreição – quer a de Lázaro, quer a de Jesus – é um dos temas
fundamentais deste livro, contudo, Zimler afasta-se de toda a tentativa
primária de clarificar o fenómeno (uma das tais zonas de sombra já referidas!),
parecendo querer deixar para o leitor a liberdade de interpretação, já que são
exatamente as palavras de Jesus que irão operar a cisão entre a visão judaica
da dos primeiros cristãos no que diz respeito à tríade morte/ fim dos tempos/
ressurreição (Cf. “Ce qu’ils n’ont pas dit de Pâques” de Daniel Marguerat in
“Les premiers temps de l’Église”, org. Marie-Françoise Baslez, Gallimard, 2004,
pp 92-100): Marta e Maria sabem que Lázaro ressuscitará no fim dos tempos, mas
isso não parece consolá-las, daí reprovarem Jesus por não ter chegado a tempo (
Cf. Daniel Marguerat, op. cit. p 99), por sua vez este, apesar de saber que
ainda naquele dia (e o fim dos tempos é, então, trazido para o presente!)
Lázaro poderia estar diante do Senhor, mesmo assim, decide traze-lo de novo à
vida. Eis os dois pontos fundamentais deste livro: a ressurreição de Lázaro e a
figura de Jesus!
A
figura de Jesus não é, no entanto, nesta obra, apresentada como a do filho
unigénito de Deus, como aquele que sendo Deus encarnado participa da sua
substância e da sua natureza. É evidente que é um filho de Deus, mas no sentido
em que todos o somos, talvez com capacidades e aptidões superiores às do vulgo
para comunicar com a transcendência, mas é apenas isso e nada mais. Por
conseguinte, em O Evangelho segundo
Lázaro, Jesus é frequentemente apresentado (apenas) como: profeta (p 237),
milagreiro (p 261), um ser extraordinário
(p 214, p 265), mago (p 177, p 295), “auxiliador/ comunicador à distância”
(p 338, p 356), curandeiro (p 358), feiticeiro (p 196). Ora, e aqui Richad
Zimler insere exemplarmente o seu livro no ambiente teológico e filosófico não
só da época por ele abordada, mas também daquelas que imediatamente se lhe
seguiram – exemplos: Apolónio de Tiana (final do século I D.C.) viajou por todo
o Império Romano tendo granjeado fama de mago, profeta e operador de milagres,
aliás, também a tese de divindades intermédias ou de seres mediadores era
bastante comum, como podemos ver em Numénio de Apameia (Síria, século I D.C.) e
em Plutarco de Queroneia ( 46-120 D.C.), sendo este o mais notável
representante do chamado Platonismo Médio e em Fílon de Alexandria (30 A.C. ?),
convém não esquecer que é exatamente em Alexandria que reside a tia de Lázaro,
Ester, e será nesta cidade que a personagem que dá título ao livro encontrará
um dos seus refúgios, bem como algumas das primeiras figurações de um
cristianismo emergente, deturpador e fanatizado. Será em Alexandria, já perto
do final do romance, que Lázaro irá conhecer os arautos de uma nova religião
alicerçada numa figura que nada tem a ver com o Jesus que ele conheceu e com
quem conviveu desde a infância.
Mas
O Evangelho segundo Lázaro não é
apenas uma obra inserida, de modo escorreito, numa cultura a partir da qual
lança a sua mensagem. Os aspetos político-ideológicos (Cf. p 333), económicos e
sociais são a outra trave mestra do romance: após a sua ressurreição, Lázaro
regressa a casa numa ruela onde as pessoas se começam a amontoar para,
diariamente, lhe pedirem a bênção ou, até mesmo, a cura para uma ou outra
maleita. Este fenómeno, bem como a cumplicidade com um Jesus, que, pelo
discurso e pela ação, vai afrontando os poderosos do seu tempo, acabará
trazendo enormes problemas aos dois amigos. Veja-se, por exemplo: Jesus
libertando um escravo (p 212), as críticas que faz a Caifás (p 214), a sua
recusa da passividade ante o poder de Roma (p 218), etc. O afrontamento de
Jesus aos valores da conformidade, bem como a solidariedade – por vezes
cautelosa – demonstrada por Lázaro, têm duas consequências inevitáveis: a
prisão e crucificação de Jesus e a perseguição movida a Lázaro – e família -
que o leva a ter de abandonar a Palestina. O conflito, inicialmente com a casta
sacerdotal - sobretudo com o despótico Anás, o antigo sumo sacerdote – que teme
a perda de privilégios, alastra depois ao poder temporal e, apesar de não se
estar perante um modelo político teocrático, o que é facto é que a execução de
Jesus enfatiza a frase de Henri Pena-Ruiz para este tipo de sociedades: “Dieu
et César pour le pire” (In “Qu’est-ce que la laicité?”, Folio, 2003, pp 50-56).
Lázaro tudo faz para tirar o seu amigo da prisão: pedidos a Lucius, seu patrão;
tentativa de persuadir Augustus Sallustius, o áugure de Pilatos, mas nada surte
efeito. Estava-se perante o inevitável (pp 354-373)! Com parte da família
assassinada como represália, resta a Lázaro uma única saída: a fuga, primeiro
para Jericó, depois para Rodes… No final do romance, surge a explicitação do
porquê da necessidade de escrever este seu Evangelho,
da necessidade que sentiu em expor a Yaphiel, seu neto, aquilo que foi a
verdade factual da vida de Jesus, aquela que ele vira com os seus próprios
olhos e não a propagada naquele momento pelos seus seguidores que pululavam
mundo afora.
Richard Zimler articula assim de modo
inextricável três variáveis: a preocupação com a verdade objetiva de que o
narrador se faz arauto; as “pausas” de cariz reflexivo (Cf. p 221, p 243), que,
porque distanciadas umas das outras, poderão parecer incipientes e
desnecessárias e os momentos carregados de forte poeticidade, sobretudo os que
relevam da relação de Lázaro com Maria, uma das irmãs, e com Jesus, onde o
corpo e os sentidos assumem sempre uma conotação positiva (Cf. p 347, p 371). É
a conjugação destas últimas variáveis com o referido no segundo parágrafo deste
texto, que fazem d’ O Evangelho segundo
Lázaro uma obra de valor inestimável e imperdível.
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VICTOR OLIVEIRA MATEUS
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