domingo, 28 de maio de 2017

O novo livro de Ronaldo Cagiano.


SOCIEDADE E ÉTICA NA POESIA DE RONALDO CAGIANO

                                                                                                             
        O presente livro de Ronaldo Cagiano, Observatório do Caos, apresenta-se-nos como um olhar meticuloso e arguto não só sobre o homem nas suas diversas mundividências, mas também sobre a sociedade que o cerca e que ao poeta se mostra recorrentemente como um território polimorfo, ardiloso e que, o mais das vezes, ameaça aquilo que no ser humano faz dele algo singular e único neste planeta em que fomos chamados a estar.
A observação em torno do social é sempre uma observação situada no espaço e no tempo: “Já não se fazem revoluções/como antigamente/nesse tempo de ilusões famintas/e utopias sem destino” (pág. 5); “A vida decomposta por Chronos/como aquelas árvores depiladas/no inverno de Munique/ou o velho esmolando às margens do Tibre:” (pág. 33). Daqui ressalta que o Observatório em que o poeta se coloca para olhar, inventariar e recusar o Caos que o cerca é sempre: marcado pela temporalidade e liberto de todos os paradigmas metafísicos, aliás, esta recusa das interpretações metafísicas do real concreto perpassa toda esta obra de Ronaldo Cagiano (Cf. pp. 12, 42, 78…) prosseguindo a asserção estabelecida por Fernando Pessoa/Álvaro de Campos no poema Tabacaria (Cf. Obras Completas de Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Edições Ática, 1980, pp. 252-259). O propósito de dialogar, enfatizando ou ilustrando outros autores, é comum a este livro de Cagiano, assim como a toda a sua obra poética, elucidando a tese de que o poeta não é um ser isolado, mas antes percorre um trilho juntamente com aqueles que o antecederam e  também com os seus contemporâneos com quem vai constantemente estabelecendo istmos e pontes (Cf. poema Altares in O Sol nas Feridas. São Paulo: Dobra, 2011, pp. 86-90).
O Caos a que Cagiano se refere neste livro e que conduzirá inevitavelmente o homem contemporâneo a uma ruela obscura e sem saída pretende ser uma resposta ao célebre Poema do Beco de Manuel Bandeira (Cf. Manuel Bandeira in Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1982, p. 87), beco este que surge ao longo de todo este livro (Cf. pp. 12, 47 e 86). Poder-se-á então dizer que estamos perante uma apreensão essencial do poeta, que é também um projeto dialógico e estruturante de todo este livro: por um lado o dissecar acusatório de um sócio-cultural que se desmultiplica depois nas suas diversas vertentes (religiosa, económica, estética…) - sem jamais entrar em panfletarismos ou terçar armas com alvos de dúbia significação -, por outro, o pressuposto de que este trabalho é feito e constantemente retomado numa partilha salutar com outras vozes poéticas:

                Penso em Florbela Espanca
                em Jean Cocteau, em Hilda Hilst,
                em Dora Ferreira da Silva
                na incontida Orides Fontella
                nesse horizonte de espantos
                e nenhum milagre
                onde tudo fede a terror

                e exala ambiguidade.

                                                        (p. 85).

Acrescente-se ainda a título de exemplo, dois outros excertos de poemas cujos autores e dizeres desembocam nesse cadinho que se apresenta como o eixo central do presente livro:

                               Trovões invadem
                               casas
                               coisas
                               quebram
                               louças gráficos
                                                               vidros.

                               Anulam o supérfluo: articulam
                               um campo para o destino.

(In Orides Fontela, Poesia Reunida 1969-1996. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p. 161); e ainda:

                               Neste terraço mediocremente confortável,
                               bebemos cerveja e olhamos o mar.
                               Sabemos que nada nos acontecerá.

                               O edifício é sólido e o mundo também.

                               Sabemos que cada edifício abriga mil corpos
                               labutando em mil compartimentos iguais.
                               Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador
                               e vêm cá em cima respirar a brisa do oceano,
                               o que é privilégio dos edifícios.

                               O mundo é mesmo de cimento armado.

(In Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 41).

A presença de Carlos Drummond de Andrade é um marco fundamental no que diz respeito ao suportar do mundo e ao incentivo para uma ação transformadora do real que ao poeta compete através da sua arte (Cf. pp. 47, 64, 77, 100…). Outra presença emblemática neste livro de Ronaldo Cagiano é a do poeta Mia Couto quer através de epígrafes (Cf. p. 79), quer encetando um diálogo direto com seus poemas ou versos (Cf. p. 52).
                No Caos do mundo que Ronaldo Cagiano do seu Observatório vai vendo ganham particular relevo os aspetos económicos, ecológicos (“Sou aquele que navega/desde as ínfimas encostas/do barrento rio Pomba/desde o leito assoreado/do acossado Meia Pataca/à imensidão de Tabatinga/ao sol possível da praia do Jacaré.” p. 84), políticos (Cf. p. 66) e religiosos, nestes últimos, embora sem deixar de fustigar as religiões mais ortodoxas (Cf. p. 3), são especialmente visados os cultos fanatizados e anestesiantes como por exemplo o dos evangélicos (Cf. pp. 14, 23, 73…) por darem aso a atitudes irracionais e robotizadas propagadoras de uma “fé demencial” (Cf. p. 66) onde se enraízam todos os assassinos da liberdade formadores de normas e modelos comportamentais próprios do rebanho e da massificação acrítica. Aqui, Cagiano não nos deixa quaisquer dúvidas quanto à sua recusa das conceções estético-literárias anódinas e/ou emasculadas, por conseguinte, ele não só zurze todos os que intentam conduzir-nos para uma infra-humanidade, como enumera e estabelece analogias: há, para o poeta, uma similitude de essência entre tudo o que concorre para o aniquilamento da nossa liberdade, daí a correspondência entre as ferozes ditaduras do século XX, a retórica acrobática e milagreira dos evangélicos e aqueles que em Paris tentaram sufocar, assassinando, a liberdade de pensamento e de expressão (pp. 66 – 67). O Observatório do Caos não fornece a Cagiano um luminescente otimismo nem um edulcorado olhar que se abra a um futuro necessariamente promissor, antes pelo contrário, aquilo que do seu posto o poeta retém condu-lo a um desalento (“Cataguases sem festa, dos silêncios, das ausências./ Das imensas crateras na alma de seu povo. “ p. 21; “Em mim/ permanece uma constelação/ de vazios/ uma coreografia de varizes” p. 37)) eivado muitas vezes pela dor e pelo desespero (Cf. p. 39) a que a revolta não é alheia. Destas constatações através das quais se movem “homens domados e sem horizontes” (Cf. p. 50) surge, ao longo deste livro, a imagem do jardim - e aqui é impossível não nos lembrarmos do final de Candide de Voltaire e da necessidade de cuidarmos do nosso jardim -, pois, a função do poeta é, para Ronaldo Cagiano: a observação do Caos, a inventariação dos seus elementos, a sua descrição e o lançar das sementes de uma qualquer ação redentora geminada com a palavra insurreta e libertadora da poesia. A observação do Caos anteriormente referida não é provocada ou de cariz científico-laboratorial, nem tão-pouco contingente e acidental, ela é uma observação diária e invasiva, pois é através dela que a existência se nos impõe de chofre e de modo iniludível metaforizada na imagética do já referido jardim:

                                Jardins desidratados
 sustentam caules transgênicos
 e a minha inquietação
                               não tem a potência atômica
capaz de dinamitar o caos

                                                                 (p. 49)

e também:

 No insondável abismo
 nenhum sol espreita
 a última lágrima secando no escuro.
 O mundo em derredor
 é um festim de anonimatos
 enquanto dura a vertigem
                               do homem sem fé.
 Em sua alma,
 a única verdade
 é o jardim de bactérias
                               em que se transformou sua vida,
 esquelética como a esperança
 que o desabita.

                                                                              (p. 82)

                Chegado a este ponto desta leitura crítica de Observatório do Caos é-me pertinente enfatizar duas aporias esparsas nesta obra e nela deixadas deliberadamente insolúveis por Ronaldo Cagiano: primeiro, o livro aparece-nos como um olhar clarividente e desenganado sobre o Caos que envolve o poeta, contudo, em certos momentos da obra, este acena-nos com uma ou outra fresta de uma luminosidade possível, embora só suscetível de ser concretizada através do amor (“Mas no muito que sofrer,/com seu amor/tudo rechaço.” p. 59; “Pois/na noite insolúvel/atravessamos de mãos dadas” p. 68); esta tese de uma negritude absoluta mas que nunca é totalizadora e acaba deixando, em raros momentos, uma nesga para uma eventual reabilitação do acontecer, surge-nos já em obras anteriores do poeta: “Como a ave mitológica,/cada dia renasço/das próprias cinzas./Reinvento o calendário/pra rea(s)cender a minha vida.” (In Canção dentro da noite. Brasilia: Thesaurus, 1999, p.31). O segundo aspeto prende-se com a questão da inexistência de Deus e, mesmo assim, haver a possibilidade da fundamentação de uma Ética, ora, em Observatório do Caos,  Ronaldo Cagiano avança com a insofismável e voraz imagem de uma sociedade modelada à imagem da barbárie e de onde Deus parece ter-se retirado há muito (“ o Criador lançou suas pragas/ e o mundo jaz neste inferno:” p. 11; “Onde está Deus/que não faz nada?” p. 67), portanto, a recusa de uma entidade transcendente encontra-se intimamente ligada à problemática do Mal, bem como àquilo que se dá através dos dados empíricos: o Mal, diria Hanna Arendt ao contrário de Kant, não tem profundidade tem apenas superfície e, por isso, alastra como um fungo (Cf. António Marques in A Filosofia e o Mal, Banalidade e Radicalidade do Mal de Hanna Arendt a Kant. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2015), contudo, ao transferir a importância dada a uma Entidade Suprema, a um Primeiro Princípio, para a relação com o Outro, este livro de Cagiano acaba por tangenciar o pensar de filósofos profundamente religiosos como por exemplo o de Lévinas, para quem a Ética é fundamento do Pensar e a Infinitude da Divindade deve ser reconhecida (porque estampada) no Rosto do Outro.
          O Caos , em todas as suas vertentes: social, económica, cultural, etc. , é o que machuca o coração e o ver daquele que, no seu Observatório , recusa a indiferença e opta pela procura dessa palavra certa que exprima as “vozes de um sentir proletário” (Cf. p. 78) ou que dê tempo a dona Cidinha, para que esta impeça as bonecas da filha de se afogarem “nesses injusto mar” (Cf. p. 13). Aqui e ali, neste livro de Ronaldo Cagiano, e para além das veementes denúncia e recusa, assomam centelhas, que, apesar dos seus matizes políticos, são acima de tudo o ensejo de abanar o homem para que estabeleça outro tipo de laços, para que dos escombros agora inventariados outro Ethos possa (ainda) ressurgir, já que o renovo nos brota sempre da Guerra e da Luta dos Contrários, tal como Heraclito defendia e como o último poema deste livro de Ronaldo Cagiano – não colocado à guisa de epílogo por acaso! – insiste em nos acenar.


 Victor Oliveira Mateus, in Observatório do Caos de Ronaldo Cagiano. São Paulo: Editora Patuá, 2017.
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