SOCIEDADE E ÉTICA NA POESIA DE
RONALDO CAGIANO
O presente livro de Ronaldo Cagiano, Observatório do Caos, apresenta-se-nos
como um olhar meticuloso e arguto não só sobre o homem nas suas diversas
mundividências, mas também sobre a sociedade que o cerca e que ao poeta se
mostra recorrentemente como um território polimorfo, ardiloso e que, o mais das
vezes, ameaça aquilo que no ser humano faz dele algo singular e único neste
planeta em que fomos chamados a estar.
A observação em torno do social é sempre uma
observação situada no espaço e no tempo: “Já não se fazem revoluções/como
antigamente/nesse tempo de ilusões famintas/e utopias sem destino” (pág. 5); “A
vida decomposta por Chronos/como aquelas árvores depiladas/no inverno de
Munique/ou o velho esmolando às margens do Tibre:” (pág. 33). Daqui ressalta
que o Observatório em que o poeta se
coloca para olhar, inventariar e recusar o Caos
que o cerca é sempre: marcado pela temporalidade e liberto de todos os
paradigmas metafísicos, aliás, esta recusa das interpretações metafísicas do
real concreto perpassa toda esta obra de Ronaldo Cagiano (Cf. pp. 12, 42, 78…)
prosseguindo a asserção estabelecida por Fernando Pessoa/Álvaro de Campos no
poema Tabacaria (Cf. Obras Completas de Fernando Pessoa, Poesias
de Álvaro de Campos. Lisboa: Edições Ática, 1980, pp. 252-259). O propósito
de dialogar, enfatizando ou ilustrando outros autores, é comum a este livro de
Cagiano, assim como a toda a sua obra poética, elucidando a tese de que o poeta
não é um ser isolado, mas antes percorre um trilho juntamente com aqueles que o
antecederam e também com os seus
contemporâneos com quem vai constantemente estabelecendo istmos e pontes (Cf.
poema Altares in O Sol nas Feridas. São Paulo: Dobra, 2011, pp. 86-90).
O Caos a
que Cagiano se refere neste livro e que conduzirá inevitavelmente o homem
contemporâneo a uma ruela obscura e sem saída pretende ser uma resposta ao
célebre Poema do Beco de Manuel
Bandeira (Cf. Manuel Bandeira in Antologia Poética. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1982, p. 87), beco este que surge ao longo de todo este livro
(Cf. pp. 12, 47 e 86). Poder-se-á então dizer que estamos perante uma apreensão
essencial do poeta, que é também um projeto dialógico e estruturante de todo
este livro: por um lado o dissecar acusatório de um sócio-cultural que se
desmultiplica depois nas suas diversas vertentes (religiosa, económica,
estética…) - sem jamais entrar em panfletarismos ou terçar armas com alvos de
dúbia significação -, por outro, o pressuposto de que este trabalho é feito e
constantemente retomado numa partilha salutar com outras vozes poéticas:
Penso
em Florbela Espanca
em
Jean Cocteau, em Hilda Hilst,
em
Dora Ferreira da Silva
na
incontida Orides Fontella
nesse
horizonte de espantos
e
nenhum milagre
onde
tudo fede a terror
e
exala ambiguidade.
(p. 85).
Acrescente-se ainda a título de exemplo, dois outros excertos de
poemas cujos autores e dizeres desembocam nesse cadinho que se apresenta como o
eixo central do presente livro:
Trovões
invadem
casas
coisas
quebram
louças
gráficos
vidros.
Anulam
o supérfluo: articulam
um
campo para o destino.
(In Orides Fontela, Poesia
Reunida 1969-1996. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p. 161); e ainda:
Neste
terraço mediocremente confortável,
bebemos
cerveja e olhamos o mar.
Sabemos
que nada nos acontecerá.
O
edifício é sólido e o mundo também.
Sabemos
que cada edifício abriga mil corpos
labutando
em mil compartimentos iguais.
Às
vezes, alguns se inserem fatigados no elevador
e
vêm cá em cima respirar a brisa do oceano,
o
que é privilégio dos edifícios.
O
mundo é mesmo de cimento armado.
(In Carlos Drummond de Andrade, Sentimento
do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 41).
A presença de Carlos Drummond de Andrade é um marco fundamental no que
diz respeito ao suportar do mundo e ao incentivo para uma ação transformadora
do real que ao poeta compete através da sua arte (Cf. pp. 47, 64, 77, 100…). Outra
presença emblemática neste livro de Ronaldo Cagiano é a do poeta Mia Couto quer através de epígrafes (Cf. p. 79), quer encetando um diálogo direto com
seus poemas ou versos (Cf. p. 52).
No Caos do mundo que Ronaldo Cagiano do seu
Observatório vai vendo ganham
particular relevo os aspetos económicos, ecológicos (“Sou aquele que
navega/desde as ínfimas encostas/do barrento rio Pomba/desde o leito
assoreado/do acossado Meia Pataca/à imensidão de Tabatinga/ao sol possível da
praia do Jacaré.” p. 84), políticos (Cf. p. 66) e religiosos, nestes últimos,
embora sem deixar de fustigar as religiões mais ortodoxas (Cf. p. 3), são
especialmente visados os cultos fanatizados e anestesiantes como por exemplo o dos
evangélicos (Cf. pp. 14, 23, 73…) por darem aso a atitudes irracionais e
robotizadas propagadoras de uma “fé demencial” (Cf. p. 66) onde se enraízam
todos os assassinos da liberdade
formadores de normas e modelos comportamentais próprios do rebanho e da
massificação acrítica. Aqui, Cagiano não nos deixa quaisquer dúvidas quanto à
sua recusa das conceções estético-literárias anódinas e/ou emasculadas, por
conseguinte, ele não só zurze todos os que intentam conduzir-nos para uma
infra-humanidade, como enumera e estabelece analogias: há, para o poeta, uma
similitude de essência entre tudo o que concorre para o aniquilamento da nossa
liberdade, daí a correspondência entre as ferozes ditaduras do século XX, a
retórica acrobática e milagreira dos evangélicos e aqueles que em Paris
tentaram sufocar, assassinando, a liberdade de pensamento e de expressão (pp.
66 – 67). O Observatório do Caos não
fornece a Cagiano um luminescente otimismo nem um edulcorado olhar que se abra
a um futuro necessariamente promissor, antes pelo contrário, aquilo que do seu
posto o poeta retém condu-lo a um desalento (“Cataguases sem festa, dos
silêncios, das ausências./ Das imensas crateras na alma de seu povo. “ p. 21;
“Em mim/ permanece uma constelação/ de vazios/ uma coreografia de varizes” p.
37)) eivado muitas vezes pela dor e pelo desespero (Cf. p. 39) a que a revolta
não é alheia. Destas constatações através das quais se movem “homens domados e
sem horizontes” (Cf. p. 50) surge, ao longo deste livro, a imagem do jardim - e aqui é impossível não nos
lembrarmos do final de Candide de
Voltaire e da necessidade de cuidarmos do nosso jardim -, pois, a função do
poeta é, para Ronaldo Cagiano: a observação do Caos, a inventariação dos seus elementos, a sua descrição e o
lançar das sementes de uma qualquer ação redentora geminada com a palavra
insurreta e libertadora da poesia. A observação do Caos anteriormente referida não é provocada ou de cariz
científico-laboratorial, nem tão-pouco contingente e acidental, ela é uma
observação diária e invasiva, pois é através dela que a existência se nos impõe
de chofre e de modo iniludível metaforizada na imagética do já referido jardim:
Jardins desidratados
sustentam caules transgênicos
e a minha inquietação
não tem a potência atômica
capaz
de dinamitar o caos
(p. 49)
e também:
No insondável abismo
nenhum sol espreita
a última lágrima secando no escuro.
O mundo em derredor
é um festim de anonimatos
enquanto dura a vertigem
do homem sem fé.
Em sua alma,
a única verdade
é o jardim de bactérias
em que se transformou sua vida,
esquelética como a esperança
que o desabita.
(p.
82)
Chegado a este
ponto desta leitura crítica de Observatório
do Caos é-me pertinente enfatizar duas aporias esparsas nesta obra e nela
deixadas deliberadamente insolúveis por Ronaldo Cagiano: primeiro, o livro
aparece-nos como um olhar clarividente e desenganado sobre o Caos que envolve o poeta, contudo, em
certos momentos da obra, este acena-nos com uma ou outra fresta de uma luminosidade
possível, embora só suscetível de ser concretizada através do amor (“Mas no
muito que sofrer,/com seu amor/tudo rechaço.” p. 59; “Pois/na noite
insolúvel/atravessamos de mãos dadas” p. 68); esta tese de uma negritude
absoluta mas que nunca é totalizadora e acaba deixando, em raros momentos, uma
nesga para uma eventual reabilitação do acontecer, surge-nos já em obras
anteriores do poeta: “Como a ave mitológica,/cada dia renasço/das próprias
cinzas./Reinvento o calendário/pra rea(s)cender a minha vida.” (In Canção dentro da noite. Brasilia:
Thesaurus, 1999, p.31). O segundo aspeto prende-se com a questão da inexistência
de Deus e, mesmo assim, haver a possibilidade da fundamentação de uma Ética,
ora, em Observatório do Caos, Ronaldo Cagiano avança com a insofismável e
voraz imagem de uma sociedade modelada à imagem da barbárie e de onde Deus
parece ter-se retirado há muito (“ o Criador lançou suas pragas/ e o mundo jaz
neste inferno:” p. 11; “Onde está Deus/que não faz nada?” p. 67), portanto, a
recusa de uma entidade transcendente encontra-se intimamente ligada à
problemática do Mal, bem como àquilo que se dá através dos dados empíricos: o
Mal, diria Hanna Arendt ao contrário de Kant, não tem profundidade tem apenas
superfície e, por isso, alastra como um fungo (Cf. António Marques in A Filosofia e o Mal, Banalidade e
Radicalidade do Mal de Hanna Arendt a Kant. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2015), contudo, ao transferir a importância dada a uma Entidade
Suprema, a um Primeiro Princípio, para a relação com o Outro, este livro de
Cagiano acaba por tangenciar o pensar de filósofos profundamente religiosos
como por exemplo o de Lévinas, para quem a Ética é fundamento do Pensar e a
Infinitude da Divindade deve ser
reconhecida (porque estampada) no Rosto do Outro.
O Caos , em todas as suas vertentes: social, económica, cultural,
etc. , é o que machuca o coração e o ver daquele que, no seu Observatório , recusa a indiferença e
opta pela procura dessa palavra certa que exprima as “vozes de um sentir
proletário” (Cf. p. 78) ou que dê tempo a dona Cidinha, para que esta impeça as
bonecas da filha de se afogarem “nesses injusto mar” (Cf. p. 13). Aqui e ali,
neste livro de Ronaldo Cagiano, e para além das veementes denúncia e recusa,
assomam centelhas, que, apesar dos seus matizes políticos, são acima de tudo o
ensejo de abanar o homem para que estabeleça outro tipo de laços, para que dos
escombros agora inventariados outro Ethos
possa (ainda) ressurgir, já que o renovo nos brota sempre da Guerra e da
Luta dos Contrários, tal como Heraclito defendia e como o último poema deste
livro de Ronaldo Cagiano – não colocado à guisa de epílogo por acaso! – insiste
em nos acenar.
Victor Oliveira Mateus, in Observatório do Caos de Ronaldo Cagiano. São Paulo: Editora Patuá, 2017.
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